terça-feira, 18 de outubro de 2011

Cortinas se fecham.


- Não consigo compreender os que vêem beleza na luta cotidiana, no suor, no sangue gasto. Pois saibam, doutores, que aquele verão que lhes contei um dia foi sem luta alguma, ainda que beleza definitivamente não tivesse deixado de existir. Lembro dos pés embaixo do chuveiro, lavando-se da areia da praia e do sal da água do mar; ou daquela piscina com gramado em volta; ou então melhor! Daquele churrasco seco movido a bebidas experimentais. Lembro pouco, na realidade. Faz tempo. Mas foram belos, disso eu sei. Disso não tenho dúvidas! Todos nós que estivemos lá sabemos disso.

Levanta-se de seu divã, olha então firmemente para os dois doutores ali perto sentados.

- Não ousem tirar a beleza da beleza e querer colocá-la no lugar da dor! Não ousem! Uma coisa, pois, é uma coisa; outra coisa, como dizem, é outra coisa. Beleza é beleza, oras! Dor é dor! E não me venham com a falácia de querer inverter os sentidos para alguma sensação de conforto! Não menosprezem a beleza por querer a satisfação! O que é belo é belo, e pronto. O que é só, é só. E só!

Levanta-se um dos doutores, o mais alto, de cabelos mais bagunçados, e diz:

- Mas então me explique por que tanto falas para nós das tuas lutas... se são elas assim tão feias e ardis... então, algum belo motivo tem de ter!

- A beleza não precisa ser contada. É isto. Está ela ali e pronto. Não precisa ela ser explicada. Se não a vês, então, meu caro, é porque não é ela beleza para ti. Se vês minha dor como beleza, ainda que eu tenha que pensar que és um pouco perturbado, aí é coisa sua e inteiramente sua. É o que vês, e sobre o que vês tenho pouco controle, assim como tens pouco controle sobre o que eu vejo. Vês o meu corpo, e vejo eu teu corpo; e se eles nos são belos, aí é como cada um os vê. Mas a dor não; a dor não é de ver, a dor é de sentir, e se a sinto, e não a sentes também, como poderia eu tentar fazer-te entender que a sinto que não lhe explicando-a? Ou, ao menos, tentando explicar-te.
Entendes? A beleza é minha, assim como também é a dor. Mas sobre a beleza não preciso dizer nada, pois não a quero ver partir; não quero a perder de vista. A quero ao meu lado, como está ao lado da terra, a flor, por exemplo. A dor não. A dor a quero distante, e aí conto tudo sobre ela, até os mínimos detalhes, até os mais sórdidos; até onde ela alcançou de mim. A quero ver partir. Sim! A quero ver partir!
O problema, doutor, é este...

Sentam-se novamente os dois. Iluminação baixa seu tom. Ar-condicionado torna-se mais gelado.

- A beleza está me fazendo sentir dor... entende? É uma visão tão, mas tão bonita, que a vejo com dor. É uma flor tão, mas tão linda, que não quero a levar para casa. Sei que no momento exato em que arrancá-la do solo, a matarei, ainda que a tendo para mim. Não quero matar esta beleza, mas tampouco a quero longe; aí fico ali, dia e noite, só a percebendo, assistindo-a. O vento bate e ela desliza por ele. A chuva cai e ela embebeda-se de prazer. O tempo passa e ela passa por ele. E mais uma vez o vento, e mais uma vez a chuva, e mais uma vez o tempo. E o vento, e a chuva, e o tempo.

- Mas então me diga, meu caro, qual o problema de a ter em vista? Está a beleza ao teu lado, não?

- Sim, está. Estou ao lado dela, mas não a posso ter para mim. Ela está onde deve estar, e eu estou apenas onde posso
estar. Não estou onde deveria, pois estou ao seu lado; tampouco estou onde quero, pois onde quero não é onde simplesmente posso. Ela, a beleza, não está em minhas mãos, assim como tampouco ela está protegida por mim. Me sinto matá-la, doutor. O vento às vezes está forte demais, e tento protege-la; acontece que não consigo, o vento passa por mim. A chuva por vezes está forte demais, e tento protegê-la; mas não consigo, o solo acaba ficando encharcado demais, e a vejo adoecer. O tempo sempre parece estar acelerado demais, e tento protegê-la; porém o tempo também está acelerado para mim, e ambos acabamos por desmoronar em sua necessidade de passar.
Não a quero ver ser apenas o que ela veio ser, e depois morrer. A queria além do que estamos adeptos a ser; o eu aqui e o ela ali, vivendo e morrendo, todos os dias.

Um intervalo de tempo.

- Mas então o que sugeres...? - pergunta o doutor, como diz alguém que pouco tem a perguntar.
- Queria eu ser da beleza como é a dela. Talvez, então, eu não a teria em minhas mãos, mas tampouco eu precisaria disso, pois eu não precisaria segurá-la; talvez, então, ela não seria tão bela, por eu ter minha própria beleza para encantar-me; talvez conversaríamos, enfim. Falaríamos a mesma língua, então. Teríamos o mesmo número de pétalas.

- De pétalas?

- Sim. A pouco comparei a beleza com uma flor, por isso.

- Ah, sim...

- E o vento, e a chuva, e o tempo... estes nos atingiriam da mesma forma, então nossas dores não seriam tão ímpares.

- Me dizes, então, que ser como ela seria a solução?

- Sim, doutor. Se...

- Não, espere. Me dizes, então, que ser como ela seria de fato a solução?

- Sim, doutor, já dis...

- Não, já o mandei esperar. Me dizes, depois de tudo que me dissestes, e atenha-se à pergunta que o farei, que ser como a tal beleza que tanto vês seria a solução?

- Sim, doutor.

- E queres, depois de tudo, ter razão no que dizes?

- Sim, doutor...

- E queres me impôr sermões como quem sabe de tudo sobre o mundo?

- Sim, mas...

- Mas...?

- Mas...

- Meu caro... a terra é da flor, e a flor é da terra... entende?

- ...

Cortinas se fecham.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Tremo


Nada mais me parece tão certo. Chegar em casa, trancar a porta, apagar as luzes e colocar esta vitrola da tecnologia para alarmar o que não sei dizer.
Nunca tudo isto me pareceu tão certo. O colchão sozinho, a sala sozinha, esta calma e este...
este "isto".
Este...
silêncio?
Talvez.
Este usurpar de mim mesmo. Este sequestro. Me parece a companhia um peso; esta coisa de não saber o que dizer e então não dizer nada: esta coisa de não precisar estar agradando, que não a mim mesmo. Esta coisa de não precisar estar falando coisas agradáveis. Não preciso, comigo, estar convencionado,
pois há uma convenção de que não sou convenção. Logo: não preciso seguir a convenção;
não entenderam?
Aí está,
esta é a questão:
se fazer entender, corretamente, a todo tempo, e estar certo, e não cometer erros, e ser alguém de exemplo, e ser alguém que alguns gostem, que outros apreciem, que alguém...
esta é a questão:
estar imerso até o último centímetro em questões, como água corrente e profunda o bastante para imergir-me até o último centímetro de alma, até o prender da respiração.
Seguir uma linha,
uma pretensão,
é pretensão demais;
é pretensão demais,
esta coisa da linha reta.
Minhas mãos tremem, oras!
Minhas mãos, tremes.

Tremo.