quarta-feira, 7 de maio de 2008

Biografia da Briga.

- Essa chuva de merda!
Tentava desembaçar os vidros do seu carro, como se a culpa fosse do mundo.
- Tá tudo úmido, nojento. Tenho que chegar em casa e ainda limpar aquela lameira. Graças a deus que moro em apartamento, graças a deus! Imagina, uma casa! Loucura da cabeça do teu pai. É porque ele não limpa a porra dos teus tênis que, incrivelmente, todos os santos dias ficam embarrados. Nem parece que a gente mora na cidade! Por onde tu anda, afinal?
- No par...
- Não, não. Esquece, nem quero saber. Já me canso, já me estresso o bastante. Você já tem dezoito anos, tá bem grandinho. Vou te colocar para lavar os tênis, para aprender...

E ela ia, ia, ia, até que chegamos em casa. Fui direto para meu quarto, fechei portas e ouvidos, como sempre.
Mas ainda assim ouvia certos grunhidos. Às vezes era ela ensaiando para testes, às vezes atuando como minha mãe mesmo.
Um dia desses ela chegou com os olhos inchados, pensei que tinha conseguido o papel. Mas só soube criticar o texto. Dizia sem parar: "Dor seria ter de fazer este personagem de merda, ó Deus!". Até perguntei o que houve, mas só soube começar a chorar e dizer: "Maldito seja teu pai, maldito seja!", e ainda em tom teatral.
Eu gosto quando ela faz isso. Queria ver ela um dia desses. Ela faz bastantes peças, se esforça bastante e, no geral do dia-a-dia, é bem dramática. Deve ser uma boa atriz. Um dia ela me convida!
E o meu dia? Ah, foi legal. A aula foi chata, e eu tirei outro dez! Acho que vou passar sem problemas esse bimestre. Queria poder ganhar aquele prêmio de melhor aluno da turma na nossa formatura. Não, não, melhor... eu vou ganhar! Daí a minha mãe vai se orgulhar de mim, e talvez ela pare de falar mal do meu pai. Queria saber onde ele tá agora. Na última vez ele tava no quartel, em uma pesquisa de não sei o quê. Queria saber o que ele tá fazendo agora. Opa, calma aí diário, minha mãe ta batendo na porta!

Toc-toc. Silêncio.
O muleque abriu a porta prontamente.
- Oi mãm...
- O almoço. - e foi para a cozinha.
- Tá. - foi atrás.
Ambos sentaram-se na mesa da sala. Ela tinha quatro lugares, três cadeiras. Mas somente os dois sentavam.
Comiam acompanhados dos tilintares de garfos e facas.
Ao terminar seu almoço, a mãe o olha com aquele seu olhar:
- Olha, essa noite sonhei com você.
E o muleque levanta a cabeça, com seu coração contente.
- É? - sorrindo.
- É - também com um sorriso no rosto. Sonhei que você tinha morrido, me fez tão bem.
Levantou-se.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Biografia do Tudo.

Tudo.
Tudo, tudo,
tudo, tudo, tudinho.
Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tun-dum, tun-dum, tun-dum. Dum
tudo.
Dum tudo, tudo, tudo, tudo, dum tudo mudo.
Mudo, tudo, tudo, tudo, mudo, tudo dum tudo tão...
mudo.
Tá tudo tão tudo, tá tudo tão mudo de uma hora para outra tá tudo tão...
tá todo mundo loco, tudo!
Tá todo mundo mais...
tão...
tun-dum. Tun-dum. Tun-dum. Tudinho, tudinho tun-dum.
Tú do quem?
Tú do quem?
Quem?
Tudo.
Tudo?
Tun-dum, então, pra tí. Vai tomar no tudo, no tudinho.
Tá todo mundo tun-dum da cabeça. Tudo tun-dum de coração, de alma, de tudo, tudinho.
Tudão.
Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudão! Tão...
tun-dum. Quem?
Tudo. Tudo mesmo, todo mundo! Mundo, um dó em uma M maior! Tá tudo, tudo mesmo em uma M maior. Que dó! Deram Ré geral, tudó-ré-mi-fa-sol-la-sí você nem vendo, nem tendo, nem medo tens.
Tens nada. Nem tun-dum.
Tun-dum é tudo, tudinho pra mim.
Dum tudo infinito, pena que o tun-dum não é.
Pena que a gente só da Ré, e Ré, e Ré. E tudo, onde fica?
O mundo, temos o mundo, temos tudo! Tudo e o mundo,
chega a me fazer tun-dum.
Tú do onde? Do mundo, oras. Do mundo! O mundo não é mudo, mas ta tudo tão assim...
tão sem nexo que chego a ficar desconcertado diante de tanta falta de ética.
Tudo tão... pouco. Miúdo, achei!
Tá tudo tão miúdo. Tudinho miudinho, em pouquinho nesse mundinho. Mas o tun-dum não!
O tun-dum é tudo, não é mudo, vale o mundo!
O tun-dum é tudão! Desde a ponta do fio do cabelo até o dedão.

Biografia de alguém fora do contexto da história geral.

- Acabou. Não consigo mais, acabou... não posso mais aguentar o teu olhar desatento, tua falta de "eu tento" quando tudo o que faz é desistir, ir escondido entre as multidões, de coração na mão. Não consigo, não quero mais!
Entende?
Não quero... cansei do teu cansaço. Da tua falta de espaço para mim, da tua falta de tempo para mim, da tua falta de mim para ti.
Estou escorado: é por não poder mais carregar teu peso.
Chega! Cansei do peso. Cansei do anseio, anseio que sonha em sonhar acordado - por mal lembrar do sono, por não ter sono na hora do sonho.Não consigo mais desaparecer com teus medos. Já fiz de tudo, já perguntei para o mundo!
Não há respostas, somente respostas vazias. Não há vingança sem atos contrários, pois tudo o que não suporto é a tua falta de feitos!
Enjoei do teu corpo. Tenho nojo do teu cheiro, agora. Levo tudo teu, levo tudo meu. Não te deixo nada, não tens o Direito a nada! Não queres nada, não quero nada teu. Não quero mais nada teu.
Não suporto mais. Nem respirar consigo mais.

Era o vapor. Estava deixando o corpo quente, com a cabeça quente. A face de ambos encostava-se, nariz a nariz, testa a testa. Os cabelos molhados apoiados, longos cabelos molhados, ao livre ar quente imóvel, preso no vapor-banheiro. A mão direita encostava-se palm’a palma, dedo a dedo. A dor tomava conta de sua expressão, de seu corpo-coração.
A mão esquerda começaria a doer da dor dos estilhaços, antes seu par. Agora, estilhaços ao chão. Seus pés doeriam, agora.
Com passos doloridos, sangrou o chão. Pintou o chão com a cor de seu vão. O Mundo era aquele Ser Humano, aqueles seus traços.
A sua sujeira.
A sujeira sujava o chão.
Misturado ao chão antes molhado, ao suor dos pés antes intactos, das pequenas gotas lacrimais, às sujeiras que antes já estavam no chão infinitamente limpo - infinitamente sujo, infinitas vezes – misturava-se o finito:
Aquele Ser Humano.
O Ser Humano estava perdendo seu tempo, sua história, sua memória. A consciência estava desaparecendo.
Barulhos, gritos, socos na porta. Todos estes chamando pelo Ser Humano, mas o Ser Humano trancara a porta.
Havia deixado-os de fora
do festerê, longe da sujeira.
O festerê, a lameira, a bagunça, o caos, a desordem, os quebrados, os inteiros, poucos intactos – todos assistiriam.
Sujou!A porta arrombou, logo: todos viram.Todos viram. Perceberam: o Ser Humano é mais frágil que o invisível. Que o espelho. Que o líquido sólido:
vidro.

domingo, 4 de maio de 2008

Sua Biografia.

Acabou pegando o costume.
Dia após dia encontrava-se com a cavalaria da fonte, da praça, do centro de sua cidade. Perto de sua casa e da padaria da esquina.
Na padaria pegava seu vinho.
Na fonte, deixava-o, após somente alguns goles.
Ele não sabia a quem estava enganando.
A chuva não sabia seus limites.

A chuva parou por dois dias, somente dois dias. Todos aproveitaram para lavar suas roupas sujas, para passear pelas cafeterias, pelas ruas. Para respirarem algum ar!
Ar este que já estava morno dentro de seus pombais, pobres de vontade.
Ele também. Além de não chegar molhado no seu trabalho e de aproveitar para frequentar um barzinho aberto com seus colegas - ou amigos, um dia descobriria - aproveitou os dias secos para não voltar encharcado dos seus passeios matinais.
Dois dias sem sol, de frio e nuvens. Mas sem chuvas. Dois dias que, após acabarem, após ele viver a vida que prometia começar após o termino da malditda chuva, terminaram. E veio, de novo, a chuva: forte ou fraca, pouco molhada ou ensopada, assim ou assada. Simplesmente veio.



6:00 da manhã. Ele levantou com seu despertador a corda turbinando seus ouvidos e despertando-o até a alma.
Nada nobre para um Rei.
Rei do Ócio, como o chamavam.A arte de não fazer nada.
E já estava terminando de por seus tênis de corrida. Rei decidira mudar! E foi, novamente, correndo até a fonte da praça do centro da cidade, sem antes deixar de parar na padaria para comprar o melhor dentre os piores vinhos. Sua cavalaria o esperava, mas não o muleque que pontualmente matava tempo até o sino de uma escola próxima soar.
Coisa da idade.
Achou estranho, mas não se encomodou. Tomou dois, três, quatro goles de seu vinho seco e despejou-o dentro da fonte.
Não para o santo, mas para sua cavalaria imperial.
Um dos cavalos, estaticamente reverenciando um pré-suposto apreciador, continuou a reverenciar seu Rei.
Não do mesmo modo como tantos outros, era diferente. O Rei sentia-se assim.
Sentia-se diferente dos outros que ali sentavam.
Sentia-se verdadeiramente reverenciado.
E ia, então, tomar seu banho para sentar no seu trono para que outros sentassem no seu divã para contarem seus problemas. Era tudo relativamente seu,
tudo que conhecia era basicamente seu,
menos seu eu.
Seu complexo de Rei teria ido mais longe do que sua arte de nada fazer pois seu reinado estendeu-se, seu re e conhecimento:
não. No seu divã, agora seu suor e sua chuva.


Seu apartamento, vazio.