terça-feira, 29 de março de 2011

Do desmedir

Entorpecem-se todos à beira do marasmo,
na beira da beira
(não do abismo, veja bem)
de si. Quantos e quantas possuem
o medo
de si...

Não,
eu não tenho o medo. Não é esta a questão -
ou não disto, digo.
Eu possuo o contra-medo,
o não-medo,
o desmedir. Pois não, não me meço -
ou não te mereceria, não é mesmo?
Tenho a ti. O desespero calmo de sair daqui.
E a eterna fome pelo retorno.

Aí então me entorpeço;
sou muita informação para mim mesmo.

Biografia de mais uma noite Canastra

I

A noite me transforma
de sujeito a verbo
o da ação
que age
perdido em meio ao silêncio e à solidão de uma cidade encharcada de álcool e boas intenções.

À noite me vingo
e de cem passo a único
um corajoso em ver onde se está
crua e nua cidade
ou apenas um medroso
incapaz de circular onde passam todos
com seus rostos pacatos e hostis.

II

Olho para frente:
ninguém.
Aí me viro para trás e também. Percebo estar cercado por mim mesmo. Nem em primeiro,
nem em último,
nem ao menos no meio, no centro; por cima, por baixo. Estou dentro, talvez;
da sujeira do cinismo da ironia da solidão,
da ilusão do homem da cidade em pensar que da sina da necessidade da conquista sobre ao menos...
ao menos... as luzes artificiais do calçadão? Não, péssima rima, que fiz só para rimar algo que não sei dizer ao certo.
Que sobre ao menos... o Ao Menos?

segunda-feira, 28 de março de 2011

Dos Fantasmas

Eu poderia utilizar as mais
vis, mais
belas; das mais
sinceras palavras para que estes fantasmas descarados e donos de tamanha persistência se afastem. Mas não, são logo eles minhas companhias quando todos os outros não estão. São eles os das noites frias, os das bebidas desmedidas, os das insônias e palavras cometidas.
Logo, ao invés de dizer-lhes as mais
vis, mais
belas; das mais
minhas palavras, digo nada. Eles se alimentam de minhas idéias, eu os alimento.
Fomos feitos uns para os outros.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Do colo da vida.

Há dias em que eu gostaria de pegar a vida no colo, como a um bebê que precisa de atenção, e fazê-la ninar ao canto de versos de Vinícius de Morais, para dá-la um pouco mais de paz e sossego, daquele aconchego que ela tantas vezes me demonstra com seu olhar. Mas não posso, e sei que não posso, por ser a vida quem está a cargo de me carregar por aí em seus ombros. Um dia espero que ela me diga:
- Estás pronto, amigo.
E talvez ela já tenha me dito isso algumas vezes, mas o conforto de me sentir alto - que não por minhas pernas -, e o medo de ver até onde meus próprios pés podem me levar, me deixaram assim, sonolento; deixado apenas no desejo de mostrá-la o quão a posso deixar orgulhosa de um dia ter me acolhido, como sempre acolheu.
Ela acho eu estar me dizendo:
- Tudo vai ficar bem.
E talvez com um pouco de hipocrisia no tom; não me importa. Quero eu cuidá-la bem.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Mais uma carta para Maestro

Ontem redescobri o quanto estavas bem; as pessoas estão te elogiando, sabia? Fazia tempo... fazia tempo que eu não ouvia bem de você - bem ou mal, fazia tempo que eu não ouvia seu nome, e que eu não fingia não me interessar. Faz tempo, não?
Quando você me deixou aquele recado, e que cheguei em casa e a porta estava destrancada, e que entrei em casa e você não estava, e que fiquei sem saber o que fazer; quando você decidiu ir embora nunca pensei... nunca havia pensado o que pensei, antes. Foram coisas horríveis, e graças a Deus você não estava ao meu lado para sabe-las - pois você lia minha mente como se fosse um cartão postal qualquer, e não pela desimportância, mas pela facilidade, simplicidade até banal com que fazias aquela mágica.
Não sei exatamente onde você foi parar, nem seu amigo, o Rei, sabe onde estás. Ele só conseguiu me dizer que estavas pelo litoral, e que estavas bem. Ele está tentando te encontrar, sabia? Está refazendo seus passos por meio de suas deixas descuidadas do seu paradeiro; e eu não sabia que você tinha falado de mim para ele. Fiquei feliz em saber isto. Quer dizer que fui importante de verdade, e não uma daquelas que você vem, vai e deixa para trás - e por isso te escrevo isso, nunca tive uma chance de te reencontrar e dizer cara a cara o que eu gostaria de ter te dito, como fiz na última carta de mais de ano atrás.
Fico pensando se você chegou ao lugar em que queria chegar. Me lembro de nossas conversas sobre nosso - meu, seu, e não exatamente nosso - futuro. Me lembro que não tinhas certeza de muitas coisas. Me lembro o quão bom você era nas coisas que fazia - às vezes juro sentir seu cheiro na nova cozinha, e o cheiro do que você aprontava pra gente nas noites de estrelas. Ainda continuas fazendo isso? Me lembro que você me disse que isto provavelmente seria um hábito eterno. Me lembro de muitas coisas.
Tentei fazer as contas de quanto tempo passou desde sua partida, e não consegui chegar a lugar nenhum; não por não saber que faz mais ou menos um anos e quatro meses, mas por perceber que isto é uma conta que talvez - e eu espero que não - sirva só para você. Para mim faz uma vida.
Muitas coisas mudaram por aqui, mas tanta coisa continua igual...
tive que me mudar algumas vezes para tirar do meu cotidiano os caminhos que caminhávamos por passeio ou para o trabalho; por mais que por ser uma cidade pequena ainda acabe chegando às mesmas ruelas e cinemas, e lojas, e restaurantes e lanchonetes, e bares - que você não gostava muito de me acompanhar. Lembra daquela minha amiga que sonhava em ir à Europa? Está por lá agora. Finalmente conseguiu. Bom, não?
Apesar das mudanças, ainda continuo com os mesmos sonhos bobos. E espero que continues com seus bobos sonhos também. Não há nada como eles para nos lembrarmos de onde viemos.
Foi um tempo bom, aquele nosso. Nunca havia pensado que eu sentiria tanto a falta de alguém que conheci por causa do Acaso - por mais que, convenhamos, todas as pessoas que conhecemos, direta ou indiretamente, são vítimas do acaso; mas você é diferente, e você sabe disso.
É uma pena que eu tenha que guardar na gaveta tudo isso; talvez eu tenha sorte do Rei entrar em contato comigo novamente para eu poder entregar isto para ele, para que ele possa entregar isto para você - por mais que eu não tenha certeza quanto a querer novamente te ver, não sei se eu teria estrutura para aguentar mais uma partida sua, ou mais algumas palavras suas. Conheci o inferno uma vez, e não é um lugar que me daria o prazer do passeio novamente.
Me lembro que uma vez sonhei que a sua partida tinha sido apenas um sonho; quando acordei e percebi não consegui sair da cama por dias, pelo desespero de querer voltar onde estávamos tão bem, rindo e falando sobre nossos relacionamentos difíceis e complicados.
É, talvez eu não te envie isto; verdades demais não fariam bem e só machucaria meu orgulho. Você sabe que Eliza's possuem um orgulho superior a tudo, e eu principalmente...

É uma pena.
Mas a vida seguiu em frente,
e fiquei feliz de saber que estás bem.
Fique bem,
Eliza.

terça-feira, 22 de março de 2011

Mais uma carta Canastra

Houve um dia que jantar sozinho me era prêmio. Que ir sozinho a lugares era uma conquista. Que dormir sozinho em casa era excitante. Que o silêncio sozinho me era calmaria.
Me lembro de quando criança em dias de chuva gostar de voltar andando sozinho para casa só para poder pisar nas poças de água que se formavam na beira da estrada, ou pelas estradas de terra que eu utilizava como desvio para um caminho mais longo, só para aproveitar um pouco mais dessa aventura que era estar por minha conta e risco no mundo que todos me diziam ser perigoso e estranho, dos homens estranhos e perigosos de balas doces oferecidas, e todo o resto.
Engraçado como a vida é.
Hoje os jantares sozinhos são suplícios. Os lugares sozinhos, hostis. Minha cama sozinha, insônia. O silêncio, inexistente; hoje há o medo do silêncio; da morte chegar e você nem poder perceber algum olhar triste em sua direção. É patética a desculpa, eu sei; todos sabem; mas ninguém quer morrer sozinho.
Hoje, meu bem, estar por minha conta e risco tornou-se desventura. O trabalho, o bar, a casa, o sono relutante - ou o prazer do prato do dia; o trabalho.
Hoje... amanhã... afinal, nem todos tem a sorte que você tem; de não ter visto o que vi, do modo que vi, com os olhos que vi, e da posição que vi. Não digo ter sido demais, pois aguentei e sim, meu bem, estou vivo. Mas perdi a receita do bolo, o trilho, o bonde das oito, e agora só amanhã de manhã, como diz o samba. Pois eu entendi: na verdade ele não quis dizer amanhã de manhã, simplesmente. Ele quis dizer sobre um novo raiar, depois que a noite passar. Talvez na próxima vida eu pegue o bonde, nem que seja ele andando; pois nessa o vi quando já estava no horizonte, e parei para assistir simplesmente por dar uma bela e única fotografia.
Talvez na próxima vida, quem sabe; quem sabe, meu bem, na próxima vida tenhamos mais sorte.
Quem sabe...

Com amor,
o céu, o chão, e tudo, tudo que eu poderia ter nas mãos, se não. Mal sou meu, pois sim...

segunda-feira, 21 de março de 2011

Biografia novamente Canastra

A sordidez é mais simples, é mais prática, por isso custa mais caro. Ando pagando o preço, eu sei; as noites e as noitadas; os dias e as cansadas pernas, os cansados olhos dos sorrisos cansados. Não tenho esperado mais que isso, e acho que na realidade nunca esperei mais que isso. Continuo esperando por isso; continuo esperando por aquilo das incontáveis vezes que contei e recontei a todos que ainda tem coragem de dar-me mais uma chance.
Em terra de Reis e Maestros, Canastras não possuem vez. O que posso eu oferecer que estes outros não tem? Tenho a pose, apenas. Tenho as palavras, apenas. Tenho minha imagem, apenas. Os outros também. Eles não se dão ao luxo de darem-se à luxúria. Eles se dão ao luxo dos restaures caros, das roupas caras, dos carros e lares perfeitos. Eu apenas gasto com o sujo. Espero encontrar na lama alguma lótus que não morra em minhas mãos - como todas as outras que tentei acolher em meus vasos caseiros, tamanha solidão. Não que onde eu more traga diferença de onde elas nasceram, mas elas não são dali; elas não nasceram para ser dali. Nasceram para a luz; a mesma que machuca meus olhos na manhã seguinte e queima minha pele regada a luz negra e neón.
Por que eu deveria me importar, mesmo? Tenho o prazer em uma das mãos e minhas palavras na outra. E é tudo que tenho desde que partiste. Isto, Reis, Maestros e é isto.
E é isso.

E é isso
tudo que tenho
desde o medo
à euforia.

E é isso
das palavras
que digo
à eutanásia concordada.

E é isso,
pelo visto.
E a compaixão
dos tolos.
E os olhares
de ontem.
E os santos
tão pacientes com meus pesares.
E as santas
de bolso,
de meu bolso estrategicamente rasgado.
E meus dedos
imageticamente imaginados entrelaçados
em teus meios.
E minha imaginação
embora distorcida,
não errada ou obsessiva.

Desculpe,
mas é tudo isso
tudo que tenho.
E não me parece justa uma troca de tudo que tenho por um pouco de realidade. Não me parece - e nem é - o bastante. Sou cachorro de rua querendo adotar outras dores para confortar, fazê-las delas minhas e passar a mão em sua cabeça, como se passasse em minha - pois meu orgulho incessante não suportaria outro fazendo isto por mim.
Sou da lama confortável, afinal. Afinal é a luz muito forte, e me queima as idéias - com acento, por favor!
Perdão, irmãos;
mas é isso tudo que tenho:
um terrível clichê.

domingo, 20 de março de 2011

Sombrancelhas

Enquanto meu corpo torna-se o exato oposto do que vejo, meu rosto cada vez mais toma forma de tudo que mais tenho medo, tornar-me outro. A cicatriz de quando caí, a cicatriz de quando briguei, as cicatrizes da ingenuidade, a falta de barba e esta barba faltosa, mal feita. Os pés de galinha e olheiras. Os furos que fiz, os que ainda não fiz e a corrente que me acompanha desde que me tornei gente. Os cabelos descoloridos, pintados, cortados, picados, errados; meu nariz escorrendo da gripe que me assola há anos; meus olhos caídos de sono não dormido por sonhos mal e mal sonhados, e vis bem-vindos; minha boca tossindo no meio de um treino de Ei, Estou Sorrindo...!; minha orelha torta de nascença, pois nem para nascer consegui ser prático. Tive que me agarrar ao cordão umbilical, negando o mundo três, quatro, cinco vezes. Resultado: vim, e ganhei a tal orelha, e agora penso que meu pescoço ser fino é mais uma consequência de minha tentativa de enforcamento precoce - pois sim, devo ser alguma reencarnação de algum fraco, medroso, que pôs fim a sua vida da mesma forma com que a ela nasci. Faria sentido.
Minhas sombrancelhas, gosto de minhas sombrancelhas. Apesar de tudo, gosto de minhas sombrancelhas; e de minha pinta logo abaixo de meu olho esquerda - coisa impossível de notar aos que ou estou longe demais ou perto e ocupado demais. Mas não, não faço minhas sombrancelhas.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Mas não é bem assim

Não,
mas não é bem assim.
Por tantas vezes
a tal liberdade
já vesti como um espartilho
em mim.

Destes tais discursos
o que me resta é a casa vazia,
dos sonhos imensos
em meio a mar sozinho.

Da loucura
o que me resta é a sobriedade
do dia seguinte
dos sonhos desejos.

Das vontades
que me possuem é a vã selvageria
dos copos meio cheios
meio vazios.

Meio que já não possuo
nem máscara
nem pele.
Ando com carne exposta
de marcas do tempo
sem nenhuma vergonha,
apenas.

Mas já não sei o que dá em mim.
Até pensei ser desespero,
mas não é.
Até já pensei ser medo,
mas por tantas vezes não é.
Já pensei ser semente
do que nunca será.
Então me deparo em não saber o que dá em mim.

domingo, 13 de março de 2011

Nada não, melhor:

A gente exige
luta
compreensão
pão
e um pouco de tudo que vocês tem nas mãos.

A gente só quer o sossego
andar de iate por volta das três
sequestrar nosso amor para dar uma volta em Paris
ter o que dizer quando chegar a nossa vez.

Da vida de novela
só levamos a de freguês da padaria
destes sonhos eternos,
mal-resolvidos
de o que é querer o que se vê
sem ter que dar pedaços de nós mesmos
em troca de um pouco de prazer.

Vocês não sabem de nada,
nada não,
e se dizem tão bons passeando com seu Rolex.

Vocês não sabem de nada,
ou melhor,
nada não,
não sabem de nada quando
impõem seu refrão
Pátria Amada Brasil,
um país de todos,
que não os do chão.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Da janela da sala

Não,
o que vejo pela janela não é chuva;
são as flores caindo,
é o verão se despindo em inverno.
É a alegria dizendo: e lá se foi mais uma estação. É a alegria dizendo:
- Te lembras? Ainda tens tempo nas mãos.
É a pétala deslizando,
é a tristeza.
É Vênus de Milo e Marte sorrindo,
é a ironia do destino.


Não,
o que vejo não é o que vejo.
É o que o mundo se tornou,
é o vento da noite transformando-se em manhã,
é o amanhã que nunca mais verei como ontem,
é o velho,
é o eterno,
é o sem nome para o que chamam de amor
que em sí possui um nome dito por tantos
mas não dito mais por mim por rancor.

Não,
é certo que já não sei mais o que vejo.
Chame como quiser,
pois chamo eu como quero.

Não,
é certo que já não sei mais se quero.
Pois sim, me rendo
ao tear das três irmãs.

Da ausência.

Há uma certa saudade
em matar a saudade.
Pois minha loucura tem pé,
cabeça,
mãos
e olhos gentis.
Tem nome.
Tem saudades,
e me mantém vivo durante a noite.


Há uma certa ausência nesta ausência de mim para mim mesmo.
Quem sabe seja de mim, também,
ainda que esta não seja a ausência maior.
Eu me sinto falta,
mas que falta fazes, ainda.



Ainda há a ausência.

Des-depois, parte I

O caótico disto tudo é que ando fazendo isto tudo por um motivo. As coisas que faço, as coisas que digo, as coisas que me tornei; o tal que me despi. Quero aparecer nas capas de revistas, jornais; na televisão em entrevistas; por todos os meios para mandar um recado para você. Nas exposições terá você, no livro terá como agradecimentos, você. Vou dizer:

“A você,
para te dizer sobre a saudade,
para te contar sobre desde então,
desde que esta tal saudade apareceu;
é isto que tenho feito, ininterruptamente, para lhe dizer
o que tenho feito
do que tenho andado
sobre o que tenho pensado
de quanto me arrependo.

Este livro é para você.”


Vou dizer isto, com seu nome no topo. Nome e sobrenome, e apelido, e endereço, e ocasião.
É frustrante, eu sei. Me frustra saber disso, que ando fazendo tudo isso para o clímax ser chamar a tua atenção, ouvir teu esbravejar. Mas tive azar; nesta vida fomos postos deste lado – um oposto ao outro. Nas anteriores como pode ter sido? Alguma delas deve ter sido extremamente feliz, para tornar-se este carma. Até me pego pensando que esta é a última que nos encontraremos: depois disso é o infinito. Tomei como ultima prova imposta, afinal: não há nada maior que o amor, se não o desamor, e encontramos exatamente as duas munidas de cada uma, um.
Nunca antes escrevi tantas incertezas, tantos “talvezes”, tantos “issos, distos” - pois não, não sei chamar do que chamam, por medo, vergonha talvez. Talvez. Talvez vergonha disto.

Viu? Incertezas.
Certezas? Combustível. Tem se tornado combustível.


II


Sou obrigado a reler tudo em voz alta, junto de meus venenos em mãos, só para ter certeza de que disse isso algum dia.

...Ao menos mais uma certeza.

terça-feira, 1 de março de 2011

Des-bEla, parte I

Será que vou sentir sua falta, como você provavelmente vai sentir falta minha? Talvez.
Me lembro de nós dois uma vez no parque, nós deitados na grama seca, como personagens de alguma trama feliz. Eu acariciando seus pêlos dos braços e de sua barba mal feita, tentando chamar sua atenção enquanto tinhas um olho em meus olhos e outro nas bundas bontas que passavam.
Sabia da tua necessidade de ser de todos; a entendia; mas naquela tarde, ao menos naquela tarde, te queria inteiro pra mim. Nunca conversamos sobre isso. Deveríamos ter conversado sobre isso?
Talvez.
Assim como eu gostaria de ter te dito coisas naquela vez, a primeira vez em que dormimos juntos em seu antigo apartamento. Não eramos um casal, eramos apenas bons conhecidos, quem sabe amigos; nem lembro o que nos dizíamos enquanto deixavas teu celular tocando músicas que gostavas, e que eu gostava também. Naquela época eu sabia que tinhas uma no teu coração, que não eu; Enquanto eu já estava descobrindo que estavas entrando arrebatadoramente no meu. Mas eu também tinha outro, mas que não sabia nada mais que entrar em minha boca, ou em minha vagina.

Nos conhecíamos há meses, tínhamo-nos confissões feitas. Lembras quando nos beijamos pela primeira vez?
Talvez.
Eu lembro.
Foi em um sonho lindo.
Você estava sentado em um sofá bege de três lugares, com uma porta de quatro águas de vidro de correr que dava em uma minúscula sacada, com um visual de prédios da Grande-Cidade-Grande, e movimentada.
As cortinas dançavam envergonhadas enquanto a luz de um sol de 10 da manhã esquentava o piso cerâmico, e seu rosto. Estavas com olhos gentis, como de quando me olhavas antes. Estávamos envergonhados, parece que tínhamos brigado alguma briga de vida inteira.
Andei até perto de você com cautela, pois por algum motivo aquilo tudo parecia ter sido minha culpa; me sentia com culpa. Me sentei ao seu lado, me olhaste e me disseste com a mesma gentileza dos seus olhos:
-
Tudo bem.
E me beijou.
Talvez tenha sido isso. Talvez minhas espectativas estivessem muito além em relação a nós dois. E digo “a nós dois” pois, apesar de tudo que me dizia e reclamavam ao seu respeito, era você quem eu precisava ver ao final de nossos dias que conhecias tão bem.
Sempre me ajudaste a carregar meus pesos. Garoto,
será que vou sentir falta de você como não acho que vou sentir?

Agora já não importa. As malas estão feitas, as passagens estão compradas e nosso adeus está sendo dado. Obrigado pelo adeus, ao menos; foi uma bela tarde, está sendo uma bela noite e o dia está raiando.