terça-feira, 24 de junho de 2008

Biografia da culpa.

- Olha, - eu falo - diz ou te calo.
Tomo um trago.
Eu ainda estava calmo.
- Traz a venda, está na dispensa.
Ordens são meu forte, sempre foram.
Dar ordens é uma Arte!
Tu ficas na descrença, já sentiste a minha presença.
- Põe.
Agora não vês.
Silêncio.
Chego próximo do teu rosto medroso e, agora, cego.
- Anda, explica, porra! - eu, aos gritos.
Gritar também é uma arte. Ou você sabe gritar, ou parece uma bicha medrosa.
E tem certas coisas que me embrulham o estômago, por isso sei gritar: para não sofrer com a possibilidade de sentir nojo de mim mesmo.
Eu ainda estava calmo.
Silêncio.
Tomo um trago.
Silêncio.
Trago.
Mas estava perdendo a paciência. Queria ir ver minha mulher, e rápido.
- Estou perdendo a paciência - disse para o coitado.
Ele não tinha culpa.
Tinha? Não sei. Eu tenho.
Eu tenho culpa.
Meu pai tem culpa.
Minha mãe não, sempre me pediu para estudar, ser um médico ou dentista talvez.
Meu pai me queria lutando pelo nosso país, então assim o fiz.
Lutei, e acabei aqui.

Minha mulher quer um filho e uma filha, mas já não garanto que quer de mim.
Não quero filhos para morrer pela paz - sendo que eles próprios não estão em paz.
Talvez seja por isso que eu lute. Talvez eu só queira que meus filhos não lutem. Talvez eu queira os filhos. Talvez eu queira que um seja dentista e a outra seja médica. Ou ao contrário, não sei.
Mas, antes, precisava da minha mulher.
Silêncio.
Talvez ele não tenha culpa.
Silêncio.
- Me tortura, mas não me culpa! - ele falou.
"Estranho", pensei.
- A dor não expia a culpa da tua consciência - eu disse.
Não sei porque, escapou.
Meus soldados não entenderam, o Padre presente não entendeu.
E o homem começou a chorar. Então arranquei-lhe as vendas.
Não tenho nada contra homens que choram, mas devem saber chorar. E ele sabia.
Seu rosto estava contraído, seus olhos raivosos.
Suas mãos cerradas.
- Eu... não... tenho... Culpa!
Me olhou com firmeza. Tinha bons olhos.
- Sumam com ele - ordenei. Nada entrará em sua ficha, seu nome será apagado. Nada sobrará, nem papéis, nem ossos.
Nem soldados, nem Padre entenderam.
Não foram feitos para entender.
Foram feitos para receberem ordens. E quem dava as ordens?
Silêncio.
Tomei outro trago.
Quem dava as ordens, hein?
Exato.
Silêncio.
O homem voltou a chorar, mas sem soltar um pio.
Estava aliviado.
E eu iria, então, ver minha mulher.
"Dia esclarecedor", pensei.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Entre linhas, dois;

O carinho quando encrusta, não prende: Vira pedra.
O sorriso quando some, não se esconde: Vira pelo avesso.
O avesso quando desvira, não vira o que sonhamos, vira o que somos.
Vira o tanto que restou, o que sobrou.
De tudo aquilo que eu sou,
então, o marasmo que criou,
cercou.

Cuidado!
Cercado? O mais próximo que chego é de palhaço
ou de fugitivo cheio de cordas e laços,
sem traços,
nem braços fortes o bastante para um abraço.

Atenção, atenção!
Me chamam por nomes sem um mínimo de respeito
nem correção!
Chamam por nomes que nem sei o que são,
nem o que significarão quando atingirem,
mutilarem,
desbravarem meu pulmão,
meu coração,
meu lugar de emoção, sem comoção digo eu.

Digo eu:
Que bagunça é essa em que me puseram,
para qual me arrastaram,
para qual me mostraram?
Quem ouvir de minha boca "pedi", me interne!
Me congele em câmaras escondidas a léguas de milhas de kilômetros de distância de mim mesmo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

A Biografia nossa de todo dia.

Que nem todo dia seja santo.
Tampouco porra-louca, mas nem tão pouco ocioso, ansioso, parapsicohistericalogisticamente assim:
levanta, banha, lava, come, trabalha, lava, volta, vai, senta, levanta, senta, levanta, lava, volta, retorce, distorce, retrocede, despede, excede, esquece, tristesse, quermesse, isquisitésse, malabarismos cotidianos de todos.
Nem Reis nem Joãos salvam-se.

João, ninguém mais pacato, existe.
João, ninguém tão recato persiste:
erro é acertar o acerto dos outros!
O pulo do gato; a água do poço limpo, suja;
João, ninguém, mas ninguém tão pouco. Tão quieto. Tão...
é, quieto.
Tão...
tão......
quieto.
Apaixonou-se, calou-se. Irritou-se, calou-se. Amou-se, calou-se...
Se, ele dizia sempre. "Se um dia...".

- Se um dia eu ganhar na Mega-Sena... ah! Nem sei... - ria-se.
- ... - respondia-lhe seu quarto azul claro, de cama branca e armários cor-madeira. Ainda tinha seus brinquedos de quando criança espalhados pelas prateleiras. Sua televisão: adesivos. Suas paredes: azuis com pôsteres que deixavam-no feliz, e ao seu pai contente. E ao seu tio, seu avô, e assim por diante.

Gostava de pensar na vida. De como ela iria ser daqui pra frente, a cada novo segundo.
- Daqui pra frente vou começar a estudar menos, passo muito tempo assim.
- ... - respondia-lhe seu quarto.
- É verdade, não duvide de mim não. - em seguida abriu as cortinas de sua janela, levantou os vidros, prendeu-nos em correntes e esperou o vento bater no seu rosto, mecher em seus cabelos, para então respirar e passear por seus pulmões como uma vida nova, um momento novo, um segundo novo.
Para, também, parar de suar diante de tanto mormasso que o dia azul e extremamente quente lhe propunha. Extremamente quente, e sem um vento sequer.
Esperou pela briza por aproximadamente quinze minutos, apreciando a paisagem e torrando seu rosto diante da força do Sol. A estrela máxima.

O ego do sol era tão poderoso que fora capaz de dar vida em troca de não lhe encomodarem com olhares curiosos. Mas não com João. João, ninguém mais, conseguia olhar para o Sol como se fosse uma Lua qualquer. Sua visão acabara ficando extremamente estragada por tal atitude; seus óculos de garrafa eram seu orgulho:
ele encarara o Sol dia atrás de dia. Aquele era sua marca, sua pena, mas também sua vitória.
Sua glória.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Biografia da falta de espaço.

- Preciso de tempo. Um tempo para mim, me entende!
- Não, não entendo. Te dou tudo, te dou o mundo!
- Não, não dá.
Ele ficou no mesmo lugar em que chegou, cinco minutos atrás. Na porta de sua casa, que antes também era dela.
Ela forçou a sua movimentação com um empurrão, uma cotovelada, um olhar do fundo de sua alma para o mais profundo neurônio dele.
Ele saiu do caminho, com muito esforço.
Ela saiu do apartamento, em seguida do andar, em seguida do prédio. Com esforço, com alívio, com alegria. E ganhou as ruas, o mundo que ele tanto queria dar.
Deu, de fato. Mas a força.