terça-feira, 29 de abril de 2008

Biografia do Ângulo.

Era primavera e finalmente lá vinha ela com suas roupas pretas desbotadas, fingindo ser alguém que vem como não quer nada.
O sol do fim de tarde batia no seu rosto claro, fazendo sombras nas suas curvas e delineando sua beleza e seu rebolar impávido e brasileiro. O queixo erguido, os passos firmes e o sorriso, escondido por uma petulância nem um pouco impertinente, deixavam claro que seu ego era tão grande e belo quanto as suas belezas vestidas de negro.
Meu café pós-trabalho estava completo.
As mesas estavam lotadas, por isso acabei em uma das banquetas que tanto detesto – a visão para a rua era péssima, dificultando o irreversível e inadiável passeio de fim de tarde daquela juventude sadia e rebelde. Tomei de gole o café que tinha à recém chego e, para amenizar as queimaduras, engoli o sonho de creme. Mandei segurar a conta por minutos, e saí para tomar um ar. E que ar!
O dia havia sido quente, mas o entardecer nos presenteava com aquela brisa gelada, deixando lembranças de um inverno que, em breve, já estaria batendo a porta. "Volto já", é como se dissesse.
O céu mais aberto impossível; e o sol fechava-se à medida que aqueles passos seguiam seu habitual caminho. Caminho este que nunca soube onde terminaria. A impossibilidade de não fazer-se notar, fazia a garota, nem um pouco "inha", feliz – não tanto quanto a mim, que podia assisti-la sem temê-la.
Mas o dia havia sido terrivelmente monótono, como tanto outros. A inércia dos outros participantes das reuniões me presenteava com o cargo de concluinte das decisões e debates, tidos por mim e mim mesmo. Não que eu menospreze a minha capacidade em meu cargo, mas não ter pedras para chutar enferruja a minha língua afiada – que agora poderia estar testando naqueles dezoito e poucos anos, ao invés de resmungar com os meus vinte e cinco e corridos tantos. “Ó, já está indo? Não quer parar para um café? A caminhada deve deixá-la cansada, não quer sentar para uma conversa entediante e cheia de pouco significado?”. Ela com certeza diria um "não, obrigado. Até mais!". Ela saberia dizer não educadamente, sei que ela não gostaria de me magoar.
Ela diria adeus sim, mas pense: há sempre o lado bom nestes casos:
o ângulo.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Biografia?

"É da incerteza, pois", pensava. As certezas me levaram por caminhos, mas essa incerteza... essa incerteza menospreza a minha capacidade de auto-váriascoisas.
É quando nem a marca de papel-higiênico consigo escolher, que procuro a cura da loucura: alguém que a entenda, que a suporte, que a enfrente e, mesmo assim, se comporte.

- Bom-dia - ela ia dizendo, com seu óculos refletindo o meu sentimento de "quem é ela? o que ela faz? que posição ela prefere? os cabelos pretos são tingidos ou ela é tão fingída que nem isso tenta esconder?".
- Bom-dia - eu disse.
E uma hora foi-se. Não sabia para onde olhar mais, nem sabia se devia olhar nos olhos. Os olhos me lembravam minha mãe: carentes, afetuosos, gentis, interesseiros. O corpo lembrava minha ex, e minha ex-ex, e assim por diante. Sou do tipo que congela no tempo, que prefere o time que ganha e fica com ele enquanto ganha. Pena que ele nunca ganhou, mas insisto ferrenho na idéia de que a fórmula é infalível: um dia racha.
Um dia, quem sabe.
Por isso mesmo marquei outra consulta para a próxima semana. O que me deixava extremamente... como dizer... "patético". É, isso mesmo: patético. Definição perfeita, e concordo comigo mesmo em número, gênero e grau - mesmo sem saber, ou lembrar, o que exatamente isso quer dizer, sempre detestei matemática.
Sempre detestei o que não posso entender. Mas não, não me detesto.
De acordo com aquela máxima de alguém: para toda regra há uma excessão. Né?

Passou Quinta, passou Sexta e lá veio o sábado. Maestro ficou de fazer um jantar para um amigo nosso que estaria de aniversário na Segunda, então lá fui eu, mais outra e nova vez.
O jantar foi bom. Aliás, ótimo.
Mas o que riram de mim... não foi pouco. Nunca entendi: um quer um restaurante na praia, achar uma nativa e viver para sempre feliz e simplesmente. Outro apaixona-se até mesmo por um poste.
Mas ninguém ria, ninguém podia rir. Eu, que sempre fui o mais centrado, sempre fui o mais escrachado. Te dizer, viu?
Mas fomos embora cedo, o astral do aniversariante estava pior que... bem, o meu, que... bem estava quase tão ruim quanto do Maestro.
Então fomos embora curtir a foça na maior felicidade e prazer.

Então chegou Quarta.
Patético, eu sei. Mas saí de lá feliz, brigado e sem encontro marcado.
Então chegou Quinta, Sexta... e veio chegando, chegando... e sabe o que eu descobri?
Nada.
Abosultamente nada.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Biografia de um certo acontecimento.

O dia passa,
velozes os carros passam,
veloz o tempo acaba. Sem palmas,
nem gritos,
nem desejos fervorosos. Nem medo.
Meus passos param. Meu olhar, atento,
olha.
Veloz,
seus passos passam. Seu olhar, desatento como sempre,
segue o cachecol. O cachecol voa com o vento.
Eu vôo, eu tento. Ambos vêem o tal fugir, achando-se o tal.
- Pena - eu digo.
- Até que não.
- Um café, então?

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Entre-- entre-linhas --Linhas.

Queria eu poder amar como amam os da esquina.
Se pegam nas mãos,
se enchem de não's implicantes e insistentes.
Riem-se da desgraça, de seu infortúnio, afinal:
encontraram alguém para encarar a vida inteira.
Desgraça,
esta,
que,
ridiculamente devaneio.
Queria eu poder saber o gosto do teu desgosto,
do teu anseio,
dos medos,
sonhos impossíveis,
impossíveis, sei. Mas não!
Eu me engano,
engano-me comigo mesmo. Engano-me com meus quereres.
Ainda descubro.

As tentativas são diversas, os erros são infindos, as mortes a cada noite dóem, sim. Mas a sem-vergonhice anda lado-a-lado ao desinteresse.
- Eu já disse hoje o quanto te amo?
- Não - imitou a voz doce, puxando um pouco de ansiedade e entusiasmo.
Silêncio.
Imitou a voz, imitou o choro. Só não pode imitar o corpo.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A Necrografia do começo.

- Eu preferia nem ter nascido - aos berros.
- Sinta-se em casa, meu filho.
Ela sabia desarmar, mas com olhos bondosos. Nem uma lágrima escorria deles, não faziam-se necessárias. Ela sabia que não.
Não eram necessárias, tenho o bom senso de saber quando as palavras dóem. Lágrimas eram para pessoas tapadas o bastante para não perceber. Daí elas caíam, escorríam, e a pessoa pedia perdão. Ou não. Ou eram trouxas: queriam machucar, mas não sabiam se estava surtindo efeito. Daí o outro era obrigado a perder litros de água, cerveja e vinho para o ignóbil ficar contente, e passar a caprichar um pouquinho mais no palavriado. Então, sim, a pessoa sentia-se ferida.
Bati a porta com força, sentindo medo de tê-la quebrado. E um pouco de culpa por deixá-la do outro lado, sendo que a porta provavelmente havia empenado.

Saí como um raio de casa.
A minha casa não ficava distante da praça da cidade, gostava de ir lá desde pequeno. Algumas ruas, algumas quadras, vários passos. Pertinho.
Eu nem sei, às vezes tudo resolve entrar em colapso, às vezes tudo resolve ser um filme. Às vezes as coisas simplesmente não são. Às vezes, então, nem dá para mudar, nem adianta se esforçar. Às vezes que sim, já contou quantos que não?
A gente dá passos, move o mundo, mas o boteco continua na esquina. Ele não muda, ele continua lá.
Ela também.
A vida, também.
Mas, num estralar de dedos,
não mais. Nunca mais.
Ela sabia se vingar.
Sabe sim,
a vida.
Era tinhosa. Sabia que tantos reclamavam pelo doce estar ruim,
o doce da vida.
Sabia, também, que antes com doce ruim, do que com doce algum.

Tudo o que me restou foi realmente a esperança:
na cruz não estava jesus,
a luz não era o fim,
a sirene sim. Sentia pingos, gotejos. O céu estava chorando por mim, então?
A minha mãe, não. Estava em prantos, mas engolia o choro.
Tudo o que consegui dizer foi:
- Eu já entendi, não precisa chorar. Estou deixando a casa, mãe.

Minha mãe sempre foi muito supersticiosa. Sempre manteve um laço estreito de crenças que nunca entendi. Agora a chuva chovia, tanto quanto ela sofria.
Por dias.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Biografia, e ponto.

O espelho do motorista tremia, dando um efeito um tanto interessante. Cheguei a pensar, por um instante, que outra pessoa aparecia na imagem refletida.
Um efeito interessante.
- Vou meter uma bala na testa daquele canalha.
- Ganha às nossas custas, filho da puta.
- É.
Já eram quase meia-noite, e esses três não paravam de armar planos mirabolantes. Devia ser o chefe.
- Comprou uma puta moto - disse o de vermelho, puto.
- E uma coberturazinha... - disse o do meio.
- Pff...
Os ônibus eram interessantes por isso. Cada coisa.
E uma criança não parava de me encarar, eu me divertia encarando ela com cara de mau. Que não fazia muito efeito, ela me olhava com uma feição tanto de interesse quanto de: "o que esse imbecil tá fazendo?".
Não era muito bom com expressões falsas.
Mentira.

A velocidade era nem um pouco perigosa, é possível que a única pressa de todos era de estar na cama. Mas muitos nem esperavam, babavam no banco mesmo.
Silêncio.
A catraca mais parecia que ia explodir. Tremia tanto quanto o espelho,
o ônibus era velho.

Cléck.
Cléck.
Cléck.
Mais silêncio.
Cléck.
Cléck.
Cléck.
O chiclete estava bom, sabor menta. Era doce.
Servia para mim não sentir o gosto desagradável da vida.
Cléck.
Cléck.
Silêncio, e mais 5 minutos foram-se.
Cléck. Cléck. Clé..................ck.
O chiclete é bom, mas perde a validade. Vai endurecendo, perdendo a doçura, cansando. A vida era mais forte, ela persistia em deixar o gostinho. Cléck. Aquele gostinho tão bom de... menta, era mais agradável. Doce. Espalhava-se, voltava-se, retorcia-se, desvirava-se do avesso do infinito e ia e vinha.
E eu mastigava.
Cléck.
Um ponto.
Cléck.
Cléck.
Dois pontos,
três, quatro, cinco pontos.
Cléck, cléck, cléck's.
Joguei o chiclete fora, estava horrível.

Nunca cheguei a chegar no ponto certo. Sempre passei, sempre fui precipitado demais.
O ponto exato, redondo, fixo, previsível e tão esperado: nunca.
Nem o chiclete.
O chiclete podia ser tudo aquilo, mas tente colá-lo embaixo da carteira do vizinho.
Agora peça para ele levantar a mesa.
Em seguida, veja a sua feição.
Não será falsa.

E a chuva começou a chover.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Biografia do Rei do Ócio.

Há 20 anos atrás uma chuva torrencial atormentou a sua cidade por quinze dias.
Este seria o primeiro dia da tal chuvarada.

Rei, como seus amigos chamavam, não aguentava mais sua vida parada, monótona. Rei, apelido derivado de Rei do Ócio.
De namorada em namorada, de bar em bar sempre com os mesmo amigos. Faria seus trinta e dois anos em poucos dias, seis para ser exato, e os amigos insistiam:
- Que foi, Rei? Fazê festa! Não se faz trinnnnta e doooois anos tooodo dia, ã? - já bêbados.
Piadas infames de bêbados.
Além disso, não poderia chamá-los de amigos. Eram colegas do trabalho que se reuniam praticamente todo dia para beber todas as cervejas da padaria da esquina.
Agora, me diz... quem compra cervejas em padarias?!
- Quem disse que eu não vou fazer festa? Vou sim. Em casa, comigo mesmo: pensar na minha vida.
Sabe como é, todos ficam deprimidos com a chegada do aniversário, ou fazem que ficam para sentirem pena delas. Se você não faz, experimenta.
- Ah, Rei! Só o que faltava!
- Vamos beber com todos!
- Mas... a gente já faz isso todo dia. Quero algo diferente, para variar.
- Saia com alguma diferente!
- Eu sempre saio com alguma diferente.
- Ué, sai com alguma igual então.
O Rei desistiu. Estava cansado, amanhã teria mais do seu trabalho medonho de ajudar pessoas ouvindo-as. Precisava de sua cama.
- E quem vai fazer o jantar do meu aniversário? - perguntou ele, quase saindo da porta.
- Pode deixar que eu faço - Maestro era bom nisso, ainda montaria seu próprio Restaurante.
Rei saiu, fechou a porta, e resolveu não se preocupar com a chuva. Maestro e ele moravam uma quadra de distância, o que facilitara a sua quase-amizade. E tinham a mesma idade.
Canastra, o terceiro, insistia que o caminho era sequestrar o presidente e pedir resgate. Esquece o detalhe: seria morto em seguida.

A casa estava escura, mesmo com as luzes acesas. Elas eram fracas, assim como ele.
Ligou a televisão, no pós-banho, e logo de cara deparou com notícias ruins: a filha de um cara que ouvira falar, mas não sabia a mínima quem era, havia falecido. O nome dela: Julieta. Lindo nome, pena não haver fotos na notícia. O cara era um poeta, de acordo com a Tv.
- É, morreu.
Sentiu-se tão nojento pelas palavras, que chegou ao ponto de tomar um segundo banho.
Sentiu-se pesado depois, a ponto de deitar-se ainda molhado.
O apartamento lhe permitia quatro cômodos básicos: quarto, banheiro, cozinha e sala. Era o básico para a vida d'um solteirão. Três cômodos para alimentação e um para desprezar os restos, ou para aprontar-se para a refeição. No seu sonho só via o escritório sépia e o divã vermelho. E ele, tanto deitado, quanto ouvindo.
Não era um sonho.
O mais próximo de um sonho que tivera foi com um bom vinho. Acompanhado de uma bela mulher de cabelos loiros e olhos negros. Acompanhado de uma puta noite estrelada.
Ambos os três estavam diante de uma lareira, conversando, rindo. Vivendo.
Coincidentemente tudo isto teria acontecido semana passada, às 20:00 horas nesse mesmo apartamento. Também não era um sonho.
Mas parecia.

domingo, 13 de abril de 2008

Biografia da relatividade, parte 1.

A frigideira, santa frigideira, fritava, mais uma santa vez, os malditos camarões à milanesa.
- Por que raios as pessoas pedem tanto disso? Nunca vi disso!
- Que foi, homem? Pára de reclamar que vai queimar tudo aí!
Já passava das três horas da tarde e uma família pós-praia sentia-se faminta. O primeiro lugar que viram foi o comum restaurante "Três Pescados", herói de tal historieta.
- Mas ja passa das três da tarde, oxa!
- Disse, não disse? Disse pra tí fechar... mas não! Agora faz tudinho tu, tudinho. Vou lá atender.
E foi, deixando 54 anos, sendo 15 de cozinha, sozinhos. Pior: sozinhos com a sogra.
- Boa tarde! Bem-vindos, já escolheram a bebida? - sorrindo, como que fosse morder.
- Boa tarde - responderam os quatro. Então, vamos querer uma cervejinha, que tu tens aí? - perguntou o pai.
- A gente tem só Skol e Brahma - já sabendo a reação.
- Bá, então me vê uma Skol mesmo.
Acertara.
- E uma guaraná para as crianças - comentou, rapidamente, a mãe.
Seus filhos de dezenove e dezessete anos logo pensaram, mutuamente: "Crianças? Mal sabe..."
- Ok então, vou ali buscar rapidinho.
- Claro!
Entrou na cozinha, soltando labaredas.
- Ainda bem que não tivemos filhos, não queria ser tão estúpida quanto a morena aí.
- Morena?
A mulher olhou-o com olhar mortal, e o homem voltou a fritar os camarões.
- Calma mulher.
- Calma?
- É, oxa. - ainda olhando para os camarões.
A mulher relaxou. Não sabia porquê de tanta exaltação. E nem podia por culpa na TPM!
- A salada tá pronta - disse a sogra, rindo-se do casal.
A mulher levou.
- Olha uma saladinha para ir matando a fome! - dizia, enquanto deixava o prato na mesa.
- Bá, brigada guria, tava com uma fome que tu nem imagina!
- É, fome de praia não é mole não - comentava o pai. E me ve mais uma?
- Claro! Já volto já!
- Aiai... como é bom uma férias. Não aguentava mais o trabalho. - arriscava a esposa.
- É, eu também. Aquele escritório tava me matando!
- Realmente, férias super animadas. - disseram os dezessete.
- Capaz, tem a praia deserta! - brincou os dezenove.
Os pais ignoraram, era coisa da idade...

Sem-Bio Grafia.

- Será que era para ser assim?
- Não posso dizer de certeza, mas quem sabe...
- Foi tão derepente, tão inesperado... eu não...
- Não esperava. Não pensou que podia acontecer. Não percebeu quê.
- É, por aí.
- Entendo...

Os dias passavam lentos, sem inovações por parte do tempo. Chuva, e só. Dias encarceirados dentro de casa, esperando por um quase milagre.
- Mas é claro que o sol vai voltar amanhã - cantava -, mais uma vez, eu sei!
Quase ria de sua situação. Já lhe era algo ridículo.
Já sentia que não fazia mais sentido.
E quando não faz sentido, não tem porque seguir com o time perdedor.
O telefone demorou, mas tocou.
- Alô.
E desligaram na sua cara.
- Filho da puta - retrucou.
As janelas estavam pingadas da chuva, com riscos de água. Quase poético. Quase.
O telefone voltou a tocar, e continuou tocando. Havia saído num pulo, não aguentava mais as paredes cinzas de seu pequeno aperto. Redundância, eu sei, mas necessária.
Decidiu pelas escadas, como se houvesse outra opção. Hoje queria inovar, ter uma vida mais saudável, e desceu como se fugisse das suas regras. Não havia mais porque parar.
Mas parou, abriu a porta de saída, correu até a entrada do prédio, abriu a porteira e libertou-se: chegou àquela rua húmida pela chuva demasiadamente fina, insistente e extremamente chata. Foi à padaria, escolheu o melhor vinho - o melhor dentre os piores, afinal, ele estava em uma Padaria. Comprou também um abridor, passou o cartão e dirigiu-se à praça.
A praça estava deserta, mas lhe trazia boas lembranças. Andou, cada vez mais molhado, pelos caminhos até chegar a fonte central. Era linda, e, na chuva, os cavaleiros, espadas e cavalos tomavam vida e energia. Estavam em guerra contra o tempo, assim como está nossa personagem. Admirado, como que vendo as estátuas pela segunda, ou terceira vez. Admirado, também, ficou por ver um jovem sentado em um banco. As roupas de moleque, o jeito também."Não estou sozinho", pensou.
Sentou-se nas bordas da fonte, abriu com custo a garrafa, tomou o primeiro gole. Lembrou-se, deu-se o prazer da nostalgia, do choro, e derramou o resto do vinho dentro da fonte.
- Para você - contou à fonte. Você que sempre esteve, desde a primeira vez. Sabe, nós temos algo em comum: essa imagem imóvel de estarmos lutando, é estranho. Me sinto tão potente quanto vocês aí, de cima da fonte. Me sinto como vocês, existo. Esse vinho pode não ser o melhor, afinal, agora, quero que ele represente a minha vida. Quero que vocês sintam o preço dela. É bom até, né?
A fonte não respondeu, obviamente. Mas a personagem sentiu-se bem, apesar de tudo.

A chuva não cessaria tão cedo, mais três dias. Só mais três dias permitiu-se somente existir. Após isso, quem sabe, voltaria a viver.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Grafia de uma bio escrita.

- A dor. O que é a dor? Minhas mãos sangram agora. Meu coração constantemente sangra, e as veias do mesmo constantemente sangram pela vida.
Estava de joelhos no grande palco, com as mãos percorrendo seu rosto, seu ombro, seu corpo. O rosto em puro desespero.
- O que é a dor? Me digam, pois não sei. É o sangue percorrendo a tua pele rasgada?
Só?
As lágrimas escorreram, timidamente, pelas maçãs de suas bochechas vermelhas e enrugadas. A cena estava deixando-a velha.
- Nos desesperamos ao ver o sangue, não sabemos lidar com o sangue, mas nos orgulhamos do sangue, mas detestamos nosso sangue!
Com as unhas cravadas na pele do seu braço, chorou desesperada.
- A dor não é isso, não pode ser só isso! - concentrado-se novamente. A dor não é a visão de seu sangue não estar mais onde deveria estar, a dor é a visão de que a sua vida não está mais onde você gostaria que ela estivesse. O sangue não passa de uma figura ultrajante e simplificada. E...
Com passos calmos, estalou o piso de madeira por onde passava. Tirava o lenço de sua cabeça. Amarrava o lenço na sua ferida e mão. Acolhia a ferida, não mais exposta, em seu ombro. Recostava sua cabeça em sua mão ferida, abraçava a si mesma.Suspirou, e voltou a deixar as lágrimas escorrerem.
- ...quando já não temos o que fazer diante da dor, pelo que lutar, deixamos o sangue escorrer como desculpa para nos entristecermos. Nos enfraquecemos, ao ponto de nem dor sentir. De sentirmos apenas desespero! Desespero, de tamanha dor, que apenas nos entregamos...
vedamos os olhos,
apunhalamos a esperança,
damo-nos mãos a nós mesmos,
baixamos a cabeça. Tudo para apenas deixar claro:
nos rendemos.
Cambaleante, ajoelhou-se. Fingiu um desmaio, deixou as últimas gotas de seu estoque de sangue caseiro escorrerem pelo palco.

- Próxima! - gritou o diretor entediado.
Levantou-se, desesperançosa. Sabia que não servia para este papel. Não queria ter de explicar algo tão especial, tão porcamente.Ele não sabia o que era sentir dor, então, provavelmente, passaria seus dias entediado sem saber o que era sorrir diante das câmeras.
- Você estava ótima - susurrou uma concorrente.
- Mentirosa - susurrou à concorrente.
- Não sou tão boa atriz como você - e entrou em cena, já em prantos, chorando.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Biografia da despretensão.

O muleque não tinha nada o que fazer, foi ao parque. 14 anos de sua vida, ao perceber que não havia nada o que fazer, dirigia-se ao parque - duas quadras de seu condomínio.
O parque era bonito, até.
Tinha árvores, cachorros, famílias e chimarrão. Um parque, oras!
A grama era meio tratada, e o caminho de pedrinhas era interessante.
Mas o muleque não tinha o que fazer, esse é o ponto. Foi ao parque.
Sentou-se como um muleque de 14 anos no primeiro banco que viu vazio. Tarefa complicadíssima! Em um tinha uma mãe com sua cria, não. Outro com um senhor, que com certeza puxaria assunto com o muleque sobre a escola... não. Vários outros com casais felizes, que o muleque não entendia como poderiam ser felizes, e nem queria entender. Não.
Pois bem, encontrou o vazio. Sentou-se, então. Ele gostava de não pensar em nada nesses momentos, no máximo contar os restos de cigarros fumados que espalhavam-se pela pedrita.
Após minutos cansou-se, mudou de posição, colocando a cabeça, pesada como o mundo, sobre as duas mãos; ambas em cada maçã do rosto, fazendo um italiano de gerações mais parecer um japonês canastrão.
Foi lhe dando sono, enquanto os cotovelos machucavam as coxas, onde estavam apoiadas.
E o sono foi lhe dando apoio. O parque era calmo, como o muleque.
O muleque era um muleque sabido, de pouco mulecagem. Um guri que, por falta de palavras, acabei chamando de muleque. Que muleque seja, então.
Um muleque que, de olhos fechados, via mais do mundo que um cego de olhos abertos. Ambos não enxergavam patavinas nessa comparação triste, entenda isso.
Mas viam.

O muleque cansou, os mosquitos começavam a pinicar sua perna.
Fez a volta para casa em silêncio absoluto. Entrou em casa, foi ao quarto. Fechou portas e ouvidos.

...


Bem vindo para mim, bem vindo para eu, bem vindo.