quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ultima biografia de Canastra - parte 0

Decidi por uma noite diferente. Sentei-me num bar tranquilo de pessoas de etiqueta mais apurada onde a impossibilidade de fumar fez doer o saco. Maldita lei nova, esta. Hipócritas sem causa, e radicalizo sim: os homens estão pouco se fodendo para a fumaça e as mulheres apenas se incomodam com o fedor de seus cabelos. Esta modinha de preocupação com a saúde tornou-se pública e assunto em mesas de bar por causa da beleza que é, então, começar a dizer isto com algum tom de sabedoria - do que, me desculpem, ser óbvio.
Mas tudo bem. Novo emprego, terno, uma faxina em casa. Não estava me sentindo eu mesmo, então porque não completar o papel de tolo boneco do sistema infantil e atuar com, ao menos, um bom whisky - que me desculpem os preocupados com a saúde pública e o ecologicamente correto, não precisa deste guardanapo no copo.
Esta roupa correta me deixava em minha idade correta, e minha perna entrelaçada me deixava ligeiramente e perceptivelmente mais chamativo aos homens e às mulheres que, de algum modo muito estranho, acham esta feminilidade do masculino charmoso.
Eu gostaria de saber o que há de divertido nesta coisa de ficar em luz romântica quando a vida não é nada romântica. Não só a minha, não; a de ninguém. Esta meia-luz apenas prova que, na realidade, mostrar o rosto inteiro logo de início é um temor aos que procuram um amor para a vida inteira. Nos lugares onde vou é escuro, mas ali ninguém está muito preocupado com o que vai encontrar quando as luzes finalmente se acenderem. Eu realmente não sei aonde estava Eu quando resolvi ouvir o D'ócio. Ele está certo, mas estaria ele certo para me dizer algo quando a vidinha rotineira dele absorve mais poluição que ele pode expirar?
E esta... esta... "música"? O que há de errado com ela, ó, céus?! Minha sensação é de que estou preso num elevador gigante que quebrou no andar da falsa moralidade. Todos os sorrisos trocados e a sensação de que alguém vai sentar aqui e conversar sobre como o tempo está louco hoje em dia. E todas as pernas se esfregando por baixo das mesas dizendo sexo enquanto o rosto aparenta uma expressão terrível de desespero por a idade estar avançando e estarem todos eles morrendo de medo de morrer sozinhos.
Ao menos o garçom é gente boa. Ele, após uma hora, já entendia que o copo bastava chegar a um nível crítico de esvaziamento para ele já me providenciar um refil para minha sanidade. O que me incomoda é o fato de ele estar pensando que levei algum cano, e isso fica claro em cada sorrisinho de compaixão. Oras, tenha compaixão por ti mesmo, vontade de dizer; não sou eu quem está tendo que servi-los todos!

Duas horas ali sentado foi o bastante para mim. Deixei aquele lugar metade do que pretendia ficar bêbado gastando o triplo do que me era usual. Minha sorte era que eu estava a apenas uma boa caminhada de casa, e não que caminhar a esta hora - que de acordo com meu novo celular marcava pouco mais que uma da manhã - fosse necessariamente uma boa idéia, mas de más idéias a semana já havia estado cheia.
Pude, finalmente, fumar um cigarro. Pude, finalmente, não sentir-me vigiado pelos bons olhos da sociedade bonita e socialmente suja e aceita.
Pude me sentir marginal novamente. Um ex-marginal sem causa, sem palavras para chegar em casa e desenhar. Tornei-me Eu sem mim; lobo em pele de cordeiro, como dizem; basicamente um mentiroso que mente para si, um ignorante; e minha gravata estava me matando. Como um ato de boa fé, tirei-a e joguei fora ali no meio da rua.
Engraçado: sempre me senti cansado por levar o apelido que o Rei havia me dado; mas ao menos minha consciência não doía. Agora não, agora estava diferente. Era cansaço que vinha de carregar o peso de não poder-me ater ao que eu sempre pensei que tudo seria: aquilo tudo que estava sendo antes de minha péssima idéia de querer figurar o cara comum e para bom casamento. O Rei nunca havia entendido isso, mas acatei suas idéias como servil de sua monarquia de pudores. Acabei, com o tempo, sentindo medo de voltar à minha pele; o conforto dos cabelos arrumados e da roupa arrumada e de ser gentilmente atendido ludibriou minha vista deturpada.

Cheguei em casa, tirei minhas roupas e o calor me fez negar até mesmo os lençóis. Meu caderno ao meu lado, com caneta posta ao lado, ambos me pedindo um pouco de atenção. O abri e, pela data, a última vez que o havia dado motivos de alguma alegria fazia tempo demais para que eu conseguisse me conformar.
Imagine tudo o que você pensou ser se desintegrar pela rotina?
Imagine, apenas.
Tentei me masturbar, mas não haviam motivos e nem vontade. Tentei ligar a televisão, mas a desliguei cinco minutos depois. Tentei ler algum livro, mas o fechei ao ver meus rascunhos e me pegar pensando novamente em tudo que já havia pensado. Fechei os olhos e os abri após sentir uma leve fisgada de pânico.
Eu, que nunca pertenci a lugar algum antes, agora finalmente consegui a última conquista de minhas grandes atitudes contra mim mesmo: deixar de pertencer até a mim mesmo.
É de rir, mas o pior é que ainda tenho que ir trabalhar amanhã com as roupas corretas e andar com o celular de linha nas mãos como que dizendo:
- Viu?! Eu sou como vocês, eu venero o sistema!

Biografia de todo fim, início - parte 3

É um tanto irônico isto: estares um Canastra morto e ainda vivo, enquanto eu Rei vivo, sentir-me assim pouco. Deixei teu apartamento aquela vez com a sensação estranha de que ainda te veria pelas ruas, ainda que de um certo modo eu já tivesse entendido que isto não aconteceria.
Eu não estava ao todo errado.
Dois anos se passaram e te confundir com algum figurão na noite não é nada raro, e talvez ter tido notícias do Maestro tenha reavivado ainda mais esta estranha sensação de infinito que te tornastes.
Ontem estive naquela boate que ias quase todas as noites e me fantasiei de tua personalidade. Não entendo o que aconteceu direito, pouco me lembro. Lembro apenas de tomar meia garrafa da vodka barata que gostavas tanto, de encher meu peito da fumaça que te fazia ser quem eras, de estufar meu ego com a possibilidade de deixar de ser o que chamavas: Rei do Ócio. Sentia raiva a cada vez que me lembrava deste apelido, e descia mais um gole. E, como um mantra, lembrava de você me chamando como me chamavas tanto, e fazia entrar outro gole. E, como um estupro, fazia isto comigo mesmo a cada minuto. Lembro que desci as escadas e o barulho começou a me abraçar em um abraço que nunca antes apenas você já havia me dado.
Lembro pouco, mas lembro de entender tua vida como um cair de ficha ironicamente divino.

Acordei dentro de meu carro no estacionamento com o sol queimando meu braço esquerdo e meu rosto. Em tato encontrei meus óculos escuros no porta luvas e consegui enxergar um pouco melhor e a cena que eu via era linda: nunca havia reparado que o estacionamento dava diretamente para a visão do oceano.
Quer dizer, foi bonito por alguns segundos. Meu estômago não aguentou e entendi porque tua garganta nunca sarava das tosses e supostas gripes e viroses; um dia faço uma mulher gozar do jeito que vomitei. Tu ririas da minha cara e diria algo como:
- Até que enfim está crescendo, D'ócio!
É engraçado. Somos o oposto um do outro, e eu sentia inveja da tua vida assim como sentias tu da minha. Querias ser mais dócil, talvez? Mas me irritava o fato de me achares doce, e tu sabias disso perfeitamente. Acho que isso que te divertia em mim: esta coisa de eu negar tanto quem eu era, quem eu sou. Estarias rindo também desta minha idéia estúpida de tentar fugir de minha pele, de fingir o que não sou para tentar tirar este manto de invisibilidade que grudou em minha carne.
Quando terminei de esguichar toda minha idiotice, endireitei-me no assento do carro e Deus, que vontade de morrer. A última vez que senti dor no corpo deste jeito foi quando entramos numa briga e tive que te segurar para não seres morto; e eis a ironia novamente: parece que não consegui te salvar, não é mesmo?
Talvez se eu não tivesse parado de tentar... ou se eu tivesse tentado e parado apenas um tempo depois... tu e esta idéia de querer defender tão fervorosamente o que tens. Era apenas um celular, seu idiota! Era só ter deixado ele levar, sem briga, sem sangue fervendo; sem essa de ter que seres tu o tempo inteiro.
Mas eu entendo agora; estavas entediado demais na vida coesa, e tampouco querias voltar para tua vida antiga. Morrestes para não te tornares uma pessoa como eu, ao final das contas; no final das contas: pagastes por teu erro de invejar minha vida pacata e estou eu aqui, ao lado de tudo que bebi, desejando morrer a sentir esta dor de cabeça filha duma puta por tentar ter tido uma noite como as tuas.
Nossa idolatria mútua não passou de veneno para o outro; eis aí nossa terceira ironia.
Um sorriso que se transformou em riso, é isso que me sobrou. Fazia tempo que eu não ria assim. A cena estava decadente, as ironias estavam engraçadas demais; somos mesmo uns fodidos, é isso que somos!
Fechei a porta, dei a ignição; voltei para casa rindo no volante. A risada, claro, fazia meu corpo todo girar, eu ainda estava um pouco bêbado e acho que quase atropelei uma dessas malditas motos que costuram o trânsito - achando isto também engraçado e rindo compulsivamente.
Não, não, meu caro amigo: desta vez termino com risadas, e não com choro. Está mais do que na hora de enfim rirmos do passado. Estás mais do que na hora de passar.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Calo.


É estranho pensar o quão dormir torna-se difícil a medida que o tempo passa. Não são, com o tempo, apenas as consequências; são, com o passar de um terrível processo de maturidade, as causas. Ou talvez um desespero por perceber quão finitos somos. Ou talvez uma sede por mais toques palpáveis do que toques reais de sonhos. Ou talvez...
ou...
talvez,
penso agora,
os tais talvezes. As ansiedades de fazer corações já acelerados acelerarem ainda mais em busca de algum cumprimento de dever ainda nem descoberto pela ânsia de querer descobrir-se embaixo das cobertas das noites frias de verões mal resolvidos por pensamentos mal resolvidos por palavras mal resolvidas por situações mal resolvidas por uma célebre falta de paciência em querer resolver tudo com paciência.
Ou talvez eu saiba menos que sei, e aí me diriam:
- Isto é coisa da idade, passa com o tempo!
Me fazendo perceber que pouco entendem o que digo, ou que não faço-me entender bem com minhas palavras, ou que ainda que falando a mesma língua, a culpa está desculpada por não ser culpa de ninguém esta falta de entendimento entre o que ouve e o que fala.
Sei que tenho sede; muita sede. Aí a afogo entre conversas levianas, saudáveis, claro, entre copos de levedura d'aquilo que todos sabemos o quê. Afogo minha sede, não a dou chance de ser sede; não me dou chance de estar sedento dentro das circunstâncias da ansiedade esta que me cala antes mesmo de começar a falar o que nem sei direito o que quero dizer. Aí desabafo palavras que não releio por medo de perceber que nada disto faz sentido.
Aí me calo novamente,
me entrego ao silêncio que dizem muitos ser oportuno não perder, em cotidiano que perder tornou-me cínico à vitória.
Aí me calo sem nem ao menos ter começado a dizer o que realmente vim dizer, por ter sido ensinado a ter vergonha de dizer o que realmente tenho a dizer; então não digo e deixo as circunstâncias serem este ciclo.

Aí...
bem...
me calo.
Sei calar-me bem.

Quando não deveria,
claro.

domingo, 6 de novembro de 2011

A última dose de Canastra


Mais uma dose de Canastra.

A música estava alta.
As doses estavam grandes, os goles estava fortes, as luzes estavam... as luzes estavam.
As bocas estavam quentes.
E mais uma boca.
E mais uma boca.
E mais outra boca.
E estava eu ali tão eu quanto sempre estive.
A música,
as doses.
Encontrei quem me disse palavras bonitas ao ouvido. Acreditei nelas, como Santo acredita em promessa de quem acredita em Santo; ouvi as palavras calmamente, senti as palavras calmamente, peguei o telefone das promessas como quem, em algum movimento de teatro, ilude as palavras a realmente lembrar seu nome. Não lembrava, porém tampouco as palavras ditas pareciam saber de onde saiam. Meras retoriedades.
Meras palavras.
Meras bocas.

A hora passava.
Em cada toque uma vontade de não ser tocado por quem tocava, mas as luzes piscava forte e a cegueira do momento exigia qualquer movimento contra a solidão eminente. Era necessária esta falta de solidão. Se fazia necessário o toque exatamente pelo fato de não pelo toque, mas pela falta do toque. O suor crescia. A memória...
se você soubesse...
cada respirar fundo antes...
cada imagem antes...
cada antes...
cada...
cada nome esquecido, número perdido, olhar ignorado. Cada caminho não trilhado.
Cada coração partido.
Estavam todos sorrindo, os pobres solitários felizes. Estavam todos dançando encantadoramente, e os braços mexiam-se, e as pernas e seus pés com seus passos fantásticos, e seus pulos e suas roupas bem pensadas; e seus olhos marejados.
Entendo os contentes por tudo isto. Os fiz entender. Os ensinei isto. Eu os inventei.
Os colchões desconhecidos,
os dias seguintes,
os cafés seguintes,
os nus desenvergonhados. Eu os inventei. Vocês bem o sabem.
Os inventei depois de tantas partidas e pouquíssimas chegadas; vejo isto apenas agora.
Sinto que agora,
apenas,
entendo isto:
este desespero pela companhia,
seja quem for.

É realmente triste isto,
de não ter com quem realmente dançar;
a música
e o silêncio,
as luzes que brilham
e os cantos escuros que fazem o show,
o campo minado que é esta variedade
de corpos que explodem de solidão.
Vejo isto apenas agora:
estão todos à procura não do beijo,
não da transa,
não do bom dia desconcertado,
muito menos do:
- Te vejo por aí.
Estão todos em busca do abraço,
das pernas entrelaças,
do aperto da cama de solteiro.
Da falta de sono
pelo prazer.

Uma pena eu ter de ir trabalhar no dia seguinte.
Acho que, na realidade, terei meus fones de ouvido como companheiros. Acho que finalmente entendi. Entendi,
finalmente,
o tamanho da solidão;
a grandeza do silêncio.
E não há nada, aparentemente, que possa me explicar como falar.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Cortinas se fecham.


- Não consigo compreender os que vêem beleza na luta cotidiana, no suor, no sangue gasto. Pois saibam, doutores, que aquele verão que lhes contei um dia foi sem luta alguma, ainda que beleza definitivamente não tivesse deixado de existir. Lembro dos pés embaixo do chuveiro, lavando-se da areia da praia e do sal da água do mar; ou daquela piscina com gramado em volta; ou então melhor! Daquele churrasco seco movido a bebidas experimentais. Lembro pouco, na realidade. Faz tempo. Mas foram belos, disso eu sei. Disso não tenho dúvidas! Todos nós que estivemos lá sabemos disso.

Levanta-se de seu divã, olha então firmemente para os dois doutores ali perto sentados.

- Não ousem tirar a beleza da beleza e querer colocá-la no lugar da dor! Não ousem! Uma coisa, pois, é uma coisa; outra coisa, como dizem, é outra coisa. Beleza é beleza, oras! Dor é dor! E não me venham com a falácia de querer inverter os sentidos para alguma sensação de conforto! Não menosprezem a beleza por querer a satisfação! O que é belo é belo, e pronto. O que é só, é só. E só!

Levanta-se um dos doutores, o mais alto, de cabelos mais bagunçados, e diz:

- Mas então me explique por que tanto falas para nós das tuas lutas... se são elas assim tão feias e ardis... então, algum belo motivo tem de ter!

- A beleza não precisa ser contada. É isto. Está ela ali e pronto. Não precisa ela ser explicada. Se não a vês, então, meu caro, é porque não é ela beleza para ti. Se vês minha dor como beleza, ainda que eu tenha que pensar que és um pouco perturbado, aí é coisa sua e inteiramente sua. É o que vês, e sobre o que vês tenho pouco controle, assim como tens pouco controle sobre o que eu vejo. Vês o meu corpo, e vejo eu teu corpo; e se eles nos são belos, aí é como cada um os vê. Mas a dor não; a dor não é de ver, a dor é de sentir, e se a sinto, e não a sentes também, como poderia eu tentar fazer-te entender que a sinto que não lhe explicando-a? Ou, ao menos, tentando explicar-te.
Entendes? A beleza é minha, assim como também é a dor. Mas sobre a beleza não preciso dizer nada, pois não a quero ver partir; não quero a perder de vista. A quero ao meu lado, como está ao lado da terra, a flor, por exemplo. A dor não. A dor a quero distante, e aí conto tudo sobre ela, até os mínimos detalhes, até os mais sórdidos; até onde ela alcançou de mim. A quero ver partir. Sim! A quero ver partir!
O problema, doutor, é este...

Sentam-se novamente os dois. Iluminação baixa seu tom. Ar-condicionado torna-se mais gelado.

- A beleza está me fazendo sentir dor... entende? É uma visão tão, mas tão bonita, que a vejo com dor. É uma flor tão, mas tão linda, que não quero a levar para casa. Sei que no momento exato em que arrancá-la do solo, a matarei, ainda que a tendo para mim. Não quero matar esta beleza, mas tampouco a quero longe; aí fico ali, dia e noite, só a percebendo, assistindo-a. O vento bate e ela desliza por ele. A chuva cai e ela embebeda-se de prazer. O tempo passa e ela passa por ele. E mais uma vez o vento, e mais uma vez a chuva, e mais uma vez o tempo. E o vento, e a chuva, e o tempo.

- Mas então me diga, meu caro, qual o problema de a ter em vista? Está a beleza ao teu lado, não?

- Sim, está. Estou ao lado dela, mas não a posso ter para mim. Ela está onde deve estar, e eu estou apenas onde posso
estar. Não estou onde deveria, pois estou ao seu lado; tampouco estou onde quero, pois onde quero não é onde simplesmente posso. Ela, a beleza, não está em minhas mãos, assim como tampouco ela está protegida por mim. Me sinto matá-la, doutor. O vento às vezes está forte demais, e tento protege-la; acontece que não consigo, o vento passa por mim. A chuva por vezes está forte demais, e tento protegê-la; mas não consigo, o solo acaba ficando encharcado demais, e a vejo adoecer. O tempo sempre parece estar acelerado demais, e tento protegê-la; porém o tempo também está acelerado para mim, e ambos acabamos por desmoronar em sua necessidade de passar.
Não a quero ver ser apenas o que ela veio ser, e depois morrer. A queria além do que estamos adeptos a ser; o eu aqui e o ela ali, vivendo e morrendo, todos os dias.

Um intervalo de tempo.

- Mas então o que sugeres...? - pergunta o doutor, como diz alguém que pouco tem a perguntar.
- Queria eu ser da beleza como é a dela. Talvez, então, eu não a teria em minhas mãos, mas tampouco eu precisaria disso, pois eu não precisaria segurá-la; talvez, então, ela não seria tão bela, por eu ter minha própria beleza para encantar-me; talvez conversaríamos, enfim. Falaríamos a mesma língua, então. Teríamos o mesmo número de pétalas.

- De pétalas?

- Sim. A pouco comparei a beleza com uma flor, por isso.

- Ah, sim...

- E o vento, e a chuva, e o tempo... estes nos atingiriam da mesma forma, então nossas dores não seriam tão ímpares.

- Me dizes, então, que ser como ela seria a solução?

- Sim, doutor. Se...

- Não, espere. Me dizes, então, que ser como ela seria de fato a solução?

- Sim, doutor, já dis...

- Não, já o mandei esperar. Me dizes, depois de tudo que me dissestes, e atenha-se à pergunta que o farei, que ser como a tal beleza que tanto vês seria a solução?

- Sim, doutor.

- E queres, depois de tudo, ter razão no que dizes?

- Sim, doutor...

- E queres me impôr sermões como quem sabe de tudo sobre o mundo?

- Sim, mas...

- Mas...?

- Mas...

- Meu caro... a terra é da flor, e a flor é da terra... entende?

- ...

Cortinas se fecham.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Tremo


Nada mais me parece tão certo. Chegar em casa, trancar a porta, apagar as luzes e colocar esta vitrola da tecnologia para alarmar o que não sei dizer.
Nunca tudo isto me pareceu tão certo. O colchão sozinho, a sala sozinha, esta calma e este...
este "isto".
Este...
silêncio?
Talvez.
Este usurpar de mim mesmo. Este sequestro. Me parece a companhia um peso; esta coisa de não saber o que dizer e então não dizer nada: esta coisa de não precisar estar agradando, que não a mim mesmo. Esta coisa de não precisar estar falando coisas agradáveis. Não preciso, comigo, estar convencionado,
pois há uma convenção de que não sou convenção. Logo: não preciso seguir a convenção;
não entenderam?
Aí está,
esta é a questão:
se fazer entender, corretamente, a todo tempo, e estar certo, e não cometer erros, e ser alguém de exemplo, e ser alguém que alguns gostem, que outros apreciem, que alguém...
esta é a questão:
estar imerso até o último centímetro em questões, como água corrente e profunda o bastante para imergir-me até o último centímetro de alma, até o prender da respiração.
Seguir uma linha,
uma pretensão,
é pretensão demais;
é pretensão demais,
esta coisa da linha reta.
Minhas mãos tremem, oras!
Minhas mãos, tremes.

Tremo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Biografia da sobrevida Canastra


Sei porque não escrevo bem.
É que me falta um pouco de verdade,
um pouco de acaso. Um pouco menos de razão. Meu coração adoeceu, e desde então tem batido apenas por obrigação;
quando sente o medo de parar, acelera até me deixar calado; mais vivo, sim, não posso dizer que não;
mas sentir-se vivo pelo pavor não é sentir-se vivo, é perceber que um dia pode-se morrer, apenas.
Desde então tem sido isto:
sobreviver. Uma sobrevida. Uma diversão intoxicada pela noite. Uma conversa pela metade. Um silêncio por inteiro. Não uma calma, uma dormência. Uma alergia ao comum. Um desgaste pelo inusitado, pelas histórias engraçadas, pela comédia irônica, ácida, pela chuva, pela tempestade, pela garoa, pelo calor, pelo frio, pelo suor frio, pelo suor seco, por este tempo seco.
Tornei-me,
ao menos,
um homem justo.
O problema é que justiça hoje é palavra desacreditada. Logo: tornei-me um homem descrente. Uma pena...

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Biografia de mais uma carta para Maestro


Você lembra de mim?
Eu sou aquela garota que você conheceu naquela sua viagem.  Que você atou os pés, as mãos, e deixou apenas um bilhete dizendo que ia embora.
Eu acho que já nem sei mais direito como é seu rosto. Lembro dos olhos, e um pouco do formato do rosto. Mas você, lembra?
Acho que já nem és mais quem eras. Tenho certeza disso. E não que eu espere isso, mas era o que você queria, então eu só espero que tenhas conseguido.

Não sei se eu deveria estar endereçando para a tua casa ou se para  minha própria.
Sabe,
entendi agora.
Entendi tudo.
Você sabe,
desde aquele dia tenho sentido falta de algo. Algo que não sabia realmente o que era; estava olhando para um cisne em um lago, ou um pato, não consegui distinguir muito. O lago você conhece, é aquele que nós dizíamos ir um dia. Pois bem, demorou: mas fui eu sozinha.
Bem,
estava eu ali sentada e mirando seu dormir em pé, com sua cabeça caída em suas costas, e
logo abaixo seu reflexo. Não lembro ao certo porquê, mas ali entendi tudo.
Tudo.
Você sabe,
eu tenho sentido algo, algo muito estranho. Eu pensava que ainda era por ti, por tua partida; e claro, no começo era, mas aí comecei a viver um belo dia. Mas ainda assim eu sentia aquela coisa estranha, aquela falta. Claro, eu sentia tua falta ainda, mas era diferente.
O que eu tinha por ti era algo que nunca imaginei pensar sobre alguém. Ela me doeu, mas ela me fez ser o que eu queria ser, entende? Foi ela minha gasolina por tanto tempo.
Aí entendi,
eu não estava sentindo sua falta,
eu estava sentindo falta de sentir a sua falta. Tive tanto medo de nunca mais ter aquilo para mim, que me agarrei na saudades não da tua presença, mas do que eu sentia por tua presença. Entende?
Eu sei que eu entendi. Entendi tudo;
Agora está mais fácil. 

domingo, 25 de setembro de 2011

Biografia do Amor


Não julgarás uma pessoa que ama jamais!
Não julgue seus tentares atentos às suas
- suas, não dela -
necessidades.
Não julgues uma pessoa que ama,
pois quem ama,
ama,
e nada muito além disto.
A morte, já tão bem recontada por iras,
quando atem-se ao ardor da alma inquieta pelo sentir demasiado da paixão, torna-se mais perigo que a loucura da raiva.
Por isso não há julgamento coeso para quem diz o que diz por querer dizer tudo aquilo que disse por amar tudo aquilo que falou; ainda que ao reverso.
Por isso,
não a julgues, meu caro. Terias que aprender primeiro a julgar a ti mesmo, e eu sei, meu amigo, o quão difícil é saber saber de seu próprio espírito.

- À'mor'te dou tudo;
casa,
comida,
roupa lavada.
E bem sabes que já tens,
não apenas um pedaço,
uma sociedade de direito majoritário de minha alma. - ela dizia.
- Mas não;
não pedi! - ele respondia.

Ela bem sabia os números exatos da paixão. Eis que ele não. Eis que ele tampouco sabia despistar o amor, assim como pouco sabia do que queria. Ele lhe dizia:

- À'mor'te dei tudo;
minhas chaves,
minhas gavetas,
minhas cobertas.
Dei-te também uma bela parte de minha cama,
onde podes todo dia chegar com minhas chaves,
colocar teu pijama que te espera em alguma de minhas gavetas,
deitar-te e cobrir-te com uma bela parcela de minhas cobertas. - ele explicava.
- Mas não;
não foi isso que pedi! - ela respondia.

Ele bem sabia da resposta que seguiria, breve e em breve de sua tão bem explanada descrição. Ela, então, o enchia de carinhos.

- À'mor'te dou tudo;
corpo,
alma,
e mais um pouco de meu corpo,
ainda quando estava eu cansada!
Ainda quando estava eu desesperada por apenas cobrir-me de teus braços!
- Mas não;
não pedi!

Ela bem sabia que não. Mas o que poderia ela lhe oferecer além de uma alma que não o interessava e um corpo que o satisfaria, ao menos? Ele lhe dizia:

- À'mor'te dei tudo;
todas as chances,
todos apelos, correspondidos,
todos os pedidos chantageados!
Até mesmo adeus, te dei. E logo que lhe cumprimentava no dia seguinte, como se nada.

- Então,
à'mor'te dou adeus.

A ironia está contida na frieza e agilidade do amor.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A biografia do renascimento de Canastra


Andei procurando palavras bonitas para esclarecer o quão desqualificado sou para viver grandes romances.
Acontece que sou bom demais para viver grandes noites,
daquelas esquecíveis, porém memoráveis. Do dia seguinte de corpo e consciência doloridos, do gosto ruim na boca, das unhas sujas.
É como ter algum complexo de porco que gosta mais é de revolver-se na lama.
A lama é boa.
É fresca e me mantém longe do calor do Sol dos dias de passarinhos cantando e pessoas caminhando à Beira-Mar com seus cachorros e com seus óculos escuros e roupas compradas na medida de suas caminhadas tão saudáveis.
As roupas que uso para minhas caminhadas, confesso, são feitas também sob medida. As rasgadas, porcamente passadas, com cheiro de suor de todos que passamos por entre para chegar ao bar para apenas pegar mais alguma bebida que nos mantenha em estado de reflexão das luzes que ecoam pelo lugar.
Ao invés de cachorros na coleira, seres humanos soltos à procura de alguém que os prenda por alguns segundos, mas que depois os largue e os deixem ir sem problema algum.
Não sou o único.
Nunca fui o único.
Não estou sozinho, só. Estou sozinho com todos estes solitários felizes por estarem felizes por estarem simplesmente felizes. Entende?
Tinha me esquecido desta sensação de estar feliz com tudo isto. Havia caído na ladainha do filme abraçado embaixo das cobertas vendo a noite passar vazia; naquela história de se ter alguém pela vida inteira.
Não,
não,
não!
Não é frustração.
Isto já consegui algumas vezes.
Algumas felizes vezes, confesso. Mas estas coisas não são para mim. Não sei lidar direito nem comigo mesmo e ainda me pedem para conseguir lidar com alguém que conheço pouco?
Não,
não,
não!
É que todos tem esta ilusão: a de que desta vez o final será diferente. Mas o final é o mesmo. Ou então você tem a sorte de morrer primeiro, ou depois morre de tristeza por ter sido escolhido para viver o pesar de ver novamente o seu tesouro partir. De novo. Como sempre foi.
Não sei fazer isso. Não sei me conformar com a ida - e tampouco com o retorno. Por isso gosto destas coisas de apenas alguns minutos. É um contrato silencioso de que ambos sairão ilesos, em que ambos esperam sair satisfeitos, e nada mais.
E absolutamente nada mais.

Ah...
simplicidade da noite...
parafraseando um tal:
aqui me tens de regresso.
Agora,
por favor:
menos pão e mais vinho, por favor.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Bom dia, obrigado.

Bom dia,
eu te diria.
Mas aí veio a vida,
e assim como aquelas ventanias que nos faziam colocar as mãos no rosto, para proteger nossos olhos da poeira e da areia, encarregou-se de nos cegar com todas aquelas palavras que nos dizemos, sem esperar para compreendermos se entendemos o que o outro estava querendo realmente falar.
Desculpe,
eu te diria.
Mas aí que aconteceu de algo extraordinário acontecer,
aconteceu que sem eu sequer reparar, os dias transformaram-se em meses, os meses em anos, os anos em uma fantástica viagem que, sim, eu realmente espero poder sentar em uma cafeteria e te contar cada belo ou feio detalhe.
Obrigado,
eu te diria.
Mas aí eu teria que reconhecer,
tudo o que pretendo é poder crescer e me tornar aquele homem que te faria sentir obrigado a me ouvir, aquele homem de se fazer provar para te fazer sequer parar e também me reconhecer como um homem grande o bastante para merecer um voltar no tempo, para então não precisar ter todas estas incríveis e cansativas histórias, para não precisar ser este grande homem que quero tanto ser só para quebrar uma regra básica da física.
Para poder me saciar com uma vida tranquila.
De sonos tranquilos.

Mas eu sei,
eu sei,
não sou tolo o bastante para acreditar em minhas próprias historietas e palavras nem tão bem formuladas.
Mas também sei que meu coração em certos momentos corre tão rápido quanto o tempo. E assim como o tempo que um dia parará, também para mais, mais que além, lá, irá. E isto quando eu mal estiver esperando.
Então...
apenas...

- Bom dia. Me desculpe, e obrigado.

sábado, 23 de julho de 2011

Incompleto

Procurei aqui, lá, acolá,
não encontrei. Devo ter te perdido, sono, em alguma dança, algum carro, alguma esquina. Em alguma ficção de palavras sussurradas, ditas na surdina, sobre alguma hostilidade que andava sob um fio,
sobre algum fio afiado, pronto para cortar a voz de algum estranho desamparado,
sobre...

sobre a realidade
sob o céu,
acima do chão,
entre o meio,
antes do fim,
após o começo,
e eis que:
- Sim! Sim! Sim!
Nada mais que o concordar sem qualquer questionar, onde o precisar toma forma de monstro e vilão.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Biografia de todo fim, inicio - parte 2

Voltei e encontrei sua vida.
Voltei e me encontrei com uma culpa imensa. Deparei com saudades.
Eu havia estado em sua casa poucas vezes, e já fazia tanto, tanto tempo que não voltava; mas curioso essa coisa de ainda assim parecer como ontem.
As paredes brancas - ainda que algumas rabiscadas com suas (belas) loucuras, o piso claro de cerâmica.
Era óbvio o fato de ninguém ter estado ali desde que ele havia saído pela última vez. O lixeiro da cozinha estava pela metade e a louça na pia mostrava o que ele havia almoçado pela ultima vez.
Ele me disse que iria remodelar a sala, mas permanecia a mesma.
Entrei no seu quarto e arrumei sua cama. Peguei o livro que estava na sua cabeceira, o abri e li algumas coisas. Era um livro de bolso do Fernando Pessoa, um escritor que ele me ensinou tanto a gostar. Liguei o som e começou uma música já do meio - esta: http://bit.ly/id9ixV.
Deitei na cama, abri o livro e coloquei a música para repetir.
Entreti-me um pouco como ele fazia, e eis que leio esta frase, riscada em uma página em branco do mesmo livro:

Tudo vai passar.
Tudo!
Desde o que não espera-se sentir,
ao tempo.

Fechei o livro. Desliguei a música. Peguei uma foto nossa que estava na estante, fechei a porta do quarto. Então saí do apartamento, tranquei a porta e deixei a chave com o porteiro. Segui até o carro, entrei, fechei a porta, dei a ignição, liguei o rádio e estavam passando as notícias do dia. As seleções que iriam para a Copa do Mundo de 2010 haviam sido finalmente definidas; Lula e Cristina Kirchner negociariam algum impasse, enquanto Sarney esperava que nosso presidente cumprisse com a decisão do STF quanto a extradição de um tal de Cesare Battisti.
Fazia tempos que eu não ouvia as notícias, eu realmente estava por fora. E o homem continuava a falar com sua voz grave enquanto eu partia com o carro para fora daquela garagem. O nó apertando quanto mais o homem falava, agora sobre a escolha do primeiro presidente fixo da União Européia.
E o choro mais uma vez rolou pelo rosto, assim como mais uma vez o mundo continuou girando.


"...há um virar de página e a história continua, mas não o texto."
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 21 de junho de 2011

E a gente.

A gente cai
e a gente levanta
e a gente senta
e descansa

E a gente vai
toma frente na luta
pelo oposto desta nossa vez muda
dessa nossa vida obtusa

E a gente segue
se ergue pela linha torta
de escrita tremida

E a gente sai em busca
e volta horas depois
com uma vontade absurda de berrar

E os quatro ventos persistem
no que insistimos em não ignorar

- Só há a vida por haver a morte, então se conforme!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Ultima Biografia de Canastra, parte 2

I

Então é assim?
Digo,
então morrer é assim?
Mandei-o correr o mais rápido que podia e o desgraçado correu. Correu logo após um estalido de barulho estranho, seguido de uma dor estranha – daquelas que sabe que se sente, mas não se sente de fato. Senti o chão. Senti gritos. Tudo que eu havia captado era o desgraçado correndo e algumas expressões embaçadas das pessoas que andavam em volta.
Ele havia levado meu celular. E talvez ele tivesse levado algo mais.
Afinal...
então é assim morrer?
Minha consciência está leve, vazia enfim. Parece mais aquelas minhas longas caminhadas que eu dava em busca de alguma coisa que nunca entendi ao certo o que era. Acho que entendo agora. Acho que eu procurava Paz.
Algumas luzes estão piscando agora. Algumas mãos me tocam, me levantam. Me sinto de certo modo levitar, e a leveza de não pensar em nada – a não ser os passos que eu dava, a não ser no que estou vendo – me dá algum sentido.
Sei lá,
acho que me deu vontade de chorar. Mas não posso. Estou morrendo, não estou? O quão ridículo seria isto? O que pensariam de mim? E sei que não terei como explicar a eles que o choro não é de dor, não é de medo; só me deu vontade, sei lá...
mas as manchetes não podem estampar a notícia de que enfim Canastra chora. Vão dizer que é de arrependimento pela vida estranha que levei. Vida esta que me dei de presente sem arrependimento algum do que em algum momento eu fiz.
Irônico.
Isto é absolutamente irônico.
Logo minha ultima vontade em vida ser vetada.
Talvez isto seja uma espécie de castigo.
É Deus me dizendo:
- Viu?! Você não pode fazer tudo que quer.
Nem a ultima vontade – que até mesmo aos mais sujos homens é dada – a mim foi concebida.
Mas isto é um disparate!
Vocês não vão me vencer!
Me nego, pois sim:
chorarei.

II

E chorou.
Alguns dizem ter sido o choro mais belo.
Alguns juram ter visto a face não de um homem Canastra, mas de um... algo que é melhor nem repetir; seria pecado compará-lo a algo tão bom. Ele com certeza não agradeceria por este elogio. Ele diria:
- Mas isto também é um disparate!
Pois sim, meus senhores;
eis que para Canastra a cortina se fecha, e que de outra forma seria, se não com uma gota de poesia?

III

A gota
é a gota.
É a gota
d’água
do choro
da alma
é a ultima
gota
do veneno
da vida
do dia

adia
a dor
rapaz
adia

doa
a quem doer
a quem vier ver

vira
a gota
de cabeça para cima
e virá
de volta
o sangue nas veias
a frustração do tempo
...

ouvi o que disseste,
pois bem,
esquece.

Deixe ser esta
a ultima
gota.

Como queira.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Do completo

E depois de me ter
me senti completo.
Repleto.
Esperto.
Eis que me perdi de mim mesmo.
Oras,
nunca havia antes sido tudo isto!

Mudar me causa arrepios!
Que não os de prazer,
mas os de vento frio.

Dos não's, apesar quê.

I

Difícil é jogar um jogo
onde não se ganha
não se perde
então não se perca!

Não se iluda
não se meta
a pensar
o mundo é pequeno.

Não se esqueça
que esquecer não é não lembrar,
é não se importar em um contexto onde não se lembrar é algo próximo de um apenas
não é mais tempo de ainda estar lá,
ainda que apesar.

Embora que apesar de ainda que apesar
vida:
peso.
E dos que ainda pesam.
Mas que pesam,
apenas,
e não mais causam dores musculares.

II

Mas ainda me sinto repetir;
meu vocabulário anda ainda escasso,
então tenho tentado aprender novas línguas
em meio a outras línguas.

Mas acabo sentindo falar ainda o mesmo;
ainda que em outras línguas,
o mesmo antigo sempre vicioso
antigo argumento.

Mas tento parar com este vício;
o de viciar no sofrimento,
ou na falta de
(ou na falta).

III

Aí mudo a estrutura.
Reconstruo.
Insisto na novidade.
Esqueço daquele quadro antigo
exposto na sala de minha antiga casa.
Pinto um novo.
Mas como pode?
Uso as mesmas cores.

domingo, 5 de junho de 2011

Uma nota sobre a esperança

A esperança é como uma flor de verão em dia de inverno
Bela
Rara
Eis então que você se pergunta como pode ela sobreviver
Sua
Ainda crua

E por compreender que em algum momento ela há de morrer
Arranquei-a
Guardei-a
Em meio a páginas que dizem nunca tê-la encontrado.

sábado, 28 de maio de 2011

E assim terminariam as Falsas Biografias Cotidianas.

Desde então mudei de nome, mudei de endereço algumas vezes; mudei o argumento do que venho dizendo incessantemente e até mesmo o destino eu supus ter alterado algumas absurdas vezes.
Deixei-lhe a carta de despedida e tentei com todas as forças deixar junto daquela casa teu rosto. E não vou mentir que alguns dias eu cheguei a concluir que eu havia sido um homem de sucesso em minhas tentativas. Aí me frustrava, lutava e mudava mais uma vez o argumento, o destino, o rosto.
Isto não é para te dizer nada, é para dizer para mim - pois preciso sim disto - que consegui.
Mais uma vez, diferente de antes, repito:
eu fiz!
EU FIZ!
A única alteração é que não sou mais menino ingênuo para terminar com um mero: "e que não me rime com fim". Todas as grandes decisões aprendi que também vem munidas de Adeus.
Aprendi a teoria, é claro.
Deixei a nossa cidade, a que aprendi a chamar de minha, a que ironicamente se chamava Saudade, faz um bom tempo. Quanto? Ambos sabemos. Ou ao menos eu sei perfeitamente, e só não digo quantas horas por minha péssima habilidade para a matemática.
Aquele verão foi bom, não é mesmo? Foi o bastante para me fazer entender aonde quero chegar, ao menos.
Fiquei sabendo os acontecimentos da Grande-cidade-Grande, aquela cinza. Depois do que aconteceu com o Canastra acho que nunca mais terei coragem de voltar, então espero que nunca percas tempo me procurando por lá. E não se engane, fiquei sabendo que te encontrastes de novo com o Rei, as notícias correm.
Essa nova cidade que cheguei parece ser boa para viver. Pequena, estradas hora de terra, hora asfaltada, hora apenas da caminhada. Vi uma casa interessante, acho que vou me aquietar nessa. Próxima de tudo que preciso, apesar de longe de tudo que... bem, você sabe, não sabe?
Talvez montar um negócio, daqueles de vida raza de núcleo de novela razoável. Apesar do que conversávamos - e do que escondia - acho eu nunca ter imaginado nada muito além disto.
O que me pesa é com tudo isto não saber aonde vais parar.
Nos encontramos em minha ida e na sua volta, quase que algo parecido com o meio do caminho para um de nós. Talvez eu tenha chego, mas fico me perguntando se conseguistes voltar, enfim.
Faz tempo desde então, não?
Às vezes acho que até mesmo esqueci alguns detalhes do teu rosto - ou dele inteiro, não fosse as fotografias que guardei em minha agenda gasta dos tempos que estive aí, e que tenho um medo incrível de jogar fora. Lembro que uma vez anotei assim:
"Como pode mudar
tanto
tudo
em tão pouco
tempo." (10/07/09)
Só não lembro a razão, os motivos. Mas acho que eu já tinha partido. Não de corpo, mas de alma; sabe?
Mas tudo bem. Se para nada mais restou do que dar-me uma bela lição, posso também perceber tudo como uma bonita história para contar para as crianças, daquelas que a gente finge inventar e que elas adoram - e torcem por alguma espécie de fim feliz que os contadores alteram o final por saberem bem demais do que estão dizendo.
Afinal,
não foi uma bela história.
Talvez nem eu tenha entendido ao certo.
Mas o que importa,
o que importa mesmo,
é que tudo que tem início,
possui algum fim.

Isso me lembra de minha avó quando tricotava um cachecol para mim:
as histórias são como um fio de lã, sabe.
Longas, longas, longuíssimas.
Parecem não terminar quando tricotamos.
Até que terminam.
E então?
É.
Acho que contam-se outras.
Ou melhor,
compra-se mais lã.


terça-feira, 24 de maio de 2011

Biografia das decisões

Decidi parar de fumar.
Decidi mudar de vida.
Decidi parar de beber, dormir tarde; quero começar a acordar cedo, cuidar do meu corpo, arranjar um trabalho novo. Decidi parar de me mudar, e me estabelecer em um mesmo endereço pelo menos por mais de uns dois anos. Decidi almoçar no horário certo, jantar em um horário certo, tomar café da manhã, da tarde; mas tudo muito saudável e equilibrado.
Decidi ter um horário fixo para o estudo, já que dizem melhorar no resultado final. Também vou frequentar mais as bibliotecas e menos os espaços virtuais. Mandar menos e-mails e mais cartas a mão. Tratar menos de assuntos importantes via chats online e falar mais cara-a-cara.
Decidi faxinar meu quarto ao menos duas vezes por semana e não comer mais na cama. Decidi que vou cuidar mais do meu jardim e que a sala de estar é para estarem as pessoas, e não mais casacos ou mochilas.
Decidi me tornar mais decidido; menos passivo diante a decisão das outras pessoas. Decidi esperar menos - mas sem me tornar menos paciente.
Decidi ir ao médico ver como está minha saúde, ir ao dentista ver como estão meus dentes - e consertar o tal que me incomoda há anos.
Decidi parar de contar o tempo. O que passou, passou, não é mesmo?
Aí decidi parar de lembrar de tudo que passou. Decidi deixar de lado tudo o que você me ensinou. Decidi me tornar um homem que Eu sempre quis.
Então decidi parar de amar; parar de depender do passado. Parar de desviar de meus pensamentos e ignorá-los de vez.
Decidi desistir de mim.

Pois bem,
tendo em vista meu descontentamento com tais decisões,
recomecei-me pelo início:
voltei a fumar cinco minutos depois.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Da chuva

I

Há alguns meses atrás disse eu saber de que chuvas me abrigar. Pois bem, hoje digo também saber quais tempestades escolher para me banhar.
Passei todo esse tempo sem saber quais me trariam a leveza; pois bem, hoje as bem entendo. Sei da diferença entre passar frio e sentir o frio escorrendo pelos meus cabelos, incomodando meus olhos, doendo meus pulmões.
Antes eu simplesmente entendia o sofrimento e o abraçava como uma criança carente, vendo nele uma saída segura de toda loucura que a inconstante felicidade pode trazer. Hoje não a apenas entendo, mas a compreendo, e a abraço como homem - sabendo dos poréns e de seus também contratempos (que me foram uma perda valiosa de tempo).
Hoje passo frio apenas quando quero. Junto de talvez um vinho e uma boa conversa.

II

Não há nada mais libertador na vida do que desprender-se do que muitos tem medo. A chuva de ontem foi um belo exemplo.
É frio, é água; mas depois esquenta, seca. Simples.

III

Mas ainda tenho que entender que perder e vencer são antônimos somente na grafia de nossa Língua Portuguesa.
Uma vitória nunca vai suprir uma perda. A perda sempre continuará firme, talvez até do que os ganhos. O que se ganha talvez seja passageiro, um episódio. O que se perde sempre estará presente no sentido de saudade.
A perda é anacrônica. Não é do fim, nem do meio, nem do início. É de cada um.
Talvez seja meu orgulho, apenas. Mas ainda sustento esta idéia com afinco.
Você que ganhou a vida e mal reparou, já tentou experimentar perdê-la?

IV

Olá melancolia
desculpe
mas estou sem tempo até para ti.
É um certo desrespeito
e eu vejo isto
logo tu que me acompanhaste tanto tempo
me desprendo
como quem deixa de lado seu melhor amigo.
Sinto muito,
melancolia,
mas há momentos da vida
que só precisamos de tempo,
e eu vejo isto
por ter já sofrido deste mesmo despeito.
Encontraremo-nos novamente um dia,
vai ver que até mesmo amanhã,
a vida é disto:
de nunca saber o que se passa na cabeça das três irmãs.
Se elas teceram-nos um momento
hão de faltar-lhes criatividade e tecerem outro.
É uma questão de faltar de originalidade.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Biografia do frio

Revejo anotações antigas junto de músicas antigas, junto de frios na barriga antigos, vestindo roupas antigas que me lembram perfumes antigos, que me lembram outros invernos; que me fazem pensar o quão mais frios eram os invernos antigos, mas o quão mais frio passo de acordo com os anos que se passam.
Das anotações antigas percebo uma coisa: apenas minha letra não mudou. O que penso hoje, ironicamente, era exatamente o que eu temia trilhar de raciocínio sobre a vida - que tem me parecido tão certo, tão coeso... tão... mais prático, mais fácil, mais...
Não escondo e nunca escondi a saudade que tenho de mim. De nós todos juntos também, claro. Das tardes de vida e noites de sono. Da necessidade da conquista de uns e de outros. Da saudade (e que saudades da saudade!). Mas a saudade de mim... esta sim; esta sim.

Está frio.
Preciso de mais cobertas;
meus sonhos já não me aquecem mais quanto,
nem meu pranto (que pranto?),
nem meus Santos.
Não ouço mais tuas rezas,
não ignoro mais as promessas que nunca disse
mostro cá de que que é feito a verdade:
Está frio. Pronto.
Está dita na sinceridade.
Está frio. Não estás sentindo?
- É inverno! - Dizes, em tom de defesa.
E Não, não desdigo.
Afinal,
a verdade não é de advogar casos perdidos.
Casos cegos.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Biografia de uma conclusão.

A vida é tão maior que Dois.
O mundo é tão mais que ambos lábios.
Na estrada vejo tantos além de o que dizem sermos.
E aqui eu deveria dizer:
mas...
mas não há poréns.
Desaprendi a apenas querer
isto a que dizem ser
a que viemos.
Mas, e aqui sim, não!
Acho eu querer mais que quatro paredes e satisfações.
Já vi muito do mundo para parar por aqui e dizer:
já está bom.
Agora digo eu a que vim:
quero entender.
Apenas saber:
não.
"Mas..."?
mas não há poréns.
É isso que me ensinaram a querer:
o mundo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Biografia de um Canastra pacato

Há dias em que me acomete o desejo da vida pacata de servidor público de salário certo ao começo de mês. Da vida mediana.
Vou ao bar para pensar no que tenho feito, no que tenho como vida e no primeiro gole de cerveja me descem idéias erradas sobre quem tenho sido.
Olho em volta, vejo as vidas de todos engravetados que passam com suas pastas de couro, nos seus rostos tão cansados quanto os da vida minha e vejo que não há problema algum em ater-se a isto:
a vida resumida em fins-de-semana e férias anuais.
Vejo em seus dedos anelares alianças de compromisso com uma família - esposa, dois filhos, sogros, cunhados e almoços de Domingo. Enquanto isso revejo meus Domingos de ressaca moral e rostos estranhos ao meu lado. Em meus trabalhos incertos. Em minhas festas sem prazer algum.
Sem prazer algum.
Termino a garrafa e peço outra.
Termino a garrafa e peço mais uma.
Converso meias palavras com a mesa do lado, mas só queria saber as horas.
A noite está agradável e penso para onde posso ir depois daqui. Talvez mais uma das festas de prazer nulo, de rostos estranhos ao amanhecer.
Pago a conta, pego minha sensatez e coloco fones de ouvido.
Brinco com meu bom-senso de mão em mão no caminho até a casa de festas mais próxima. Entro. Entro e as luzes estão belíssimas!

Acordo com uma dor fantástica no corpo. Parece-me que dancei como ninguém. Viro para o lado e quem é que está ali? Tem beleza no rosto e no corpo, ao menos. Descubro uma rouquidão em minha voz ao tentar acordar o corpo desmaiado que repousa uma de suas pernas em cima de uma das minhas.
Meu teto parece girar. Meu estômago acaba por girar junto. Meus lábios ensaiam um sorriso.
Me sinto de volta.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Biografia da estranha compaixão

Me escapa o tempo
as paixões
os ardores juvenis
as casualidades
a graça...

só não me escapa a solidão.
Esta agarrou-se entre meus dedos como que dizendo:
- Não me deixe, estou tão sozinha! - e possuo uma certa compaixão.
Abracei-a.

Biografia do círculo

Há um perigo muito grande em ficar muito próximo de si mesmo:
o de não conseguir se ver.
É como chegar muito perto de um espelho, onde quão mais nítido enxergo uma marca, menos percebo meu rosto. Ou melhor: tentar abraçar alguém sem que a perca de vista, tão impossível quanto.
Por isso por vezes me dou distância, para perceber meu corpo e meu real tamanho; aí que me perco e me esqueço de mim; aí que me aproximo de mim. Aí, então, que novamente e gradualmente me reencontro, e me aproximo, e novamente me perco de vista.
Acabo por ciclicamente me entender e me perder, ao invés de entrar eternamente na desventura do desentendimento ou no marasmo da sabedoria míope.
Acabo por ser um romance de aventura para mim mesmo

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Uma biografia em homenagem à Pablo Neruda

Eu poderia escrever as mais belas palavras de amor esta noite, mas a noite possui perfume de passado,
e até mesmo as luzes
e o frio
e a chuva
e o vento
carregam consigo palavras de esquecimento.
Eu poderia escrever as mais belas palavras de amor,
mas não esta noite
- ou não sobre esta noite.
Eu poderia sim nesta noite
falar sobre as passadas noites
em que tudo que esta noite me lembra;
estas sim seriam belas palavras
- isto se eu conseguisse enxergar tanta beleza na saudade.

Há um longo caminho entre entender a beleza do passado e coroar a falta,
o ausente,
em entender a beleza desta noite
por apenas entender a beleza desta noite
e não entender a beleza desta noite
como um simples lembrar daquelas noites
- em que vivíamos aquelas noites.
Eu poderia, se.
Mas não posso
não quero
não me permito
escrever as mais belas palavras
em tom de pretérito passado.

Porém tampouco consigo me deixar em silêncio.

domingo, 24 de abril de 2011

Ensaiei.

I

Em um mundo onde a Arte é o reflexo da sociedade e a Política a nossa base, tem quem não compreenda, mas ambas nunca devem ser separadas. Vide o caso mais recente:
Caetano Veloso, exilado pela Ditadura Militar, apoiando a candidata Marina Silva nas últimas eleições para a presidência do Brasil.

Triste é perceber a dita classe mais culta da nossa morada hoje ater-se a apenas falar dos amores falhos, ou resumirem-se em silêncio imposto ou homenagens de aniversário de carreira.

Ou ainda: fazer propagandas beneficentes e sentir-se no orgulho de não cobrar cachê. Ou ainda mais: plantar uma árvore em programa nacional e se sentir fazendo sua parte.

Hoje sabem melhor as crianças este ditado de nossa cultura pop:
"grandes poderes trazem grandes responsabilidades". As crianças sabem o que significa, pena não terem elas o poder. Quem o tem apenas esqueceu-se. Apenas.
A moda hoje é esconderem-se nos seus grandes descampados de cortinas coloridas e energias puras, dizendo não ter mais tamanho para caber nem mesmo nas grandes cidades. Aí vai um recado:

pão que é feito de trigo, de trigo é feito ainda. Pois bem, grandes: e quem toma forma do povo, do povo é feito.
Ao menos meus heróis morreram de overdose, assim não tenho a vergonha de não vê-los por estarem sãos e salvos em seus próprios exílios montados.

Os velhos dizem que a vez é da nova geração, e a nova geração só sabe dizer que quer mais é beijar na boca; tudo isto enquanto desvio cotidianamente dos meteoros da paixão que insistem em errar meus ouvidos.

Talvez seja uma mera ilusão dos livros de história, ou de jornalistas como Zuenir Ventura. Talvez eles não tenham sido tão pró-ativos como os autores dizem. Talvez seja uma ilusão para que haja alguém hoje dizendo o que resumo agora. Quem sabe... mas...
Ah...!
que saudade dos tempos que não tive.

II

Acho que tive uma espécie de epifanía.

Me lembrei agora de minha avó me dizendo nos tempos em que me vestia de preto, deixava o cabelo crescer, ouvia Sex Pistols e achava que isso já era um começo de algum processo para melhorar o mundo – que saudades de meus quinze anos:

- Te vestes assim por quê? Queres chocar a sociedade? Andas assim para ferir as pessoas?

Somente cinco anos depois eu pude achar uma resposta.

Me vestia como eles por logo eles, os errados, os drogados, as escórias, parecerem ser os únicos que propuseram algo de seu tempo diário para cantar como a vida estava doente. Somente quem viu os dois lados pode ter alguma claridade de pensamento de o quanto as coisas estão complicadas.

Amo minha avó como amo poucas pessoas no mundo, mas não consigo mais enxergar o cotidiano como ela espera que eu enxergue.

Há um pouco mais de mês atrás estava eu sentado na entrada da casa de um amigo, acompanhado de um amigo nosso em comum e falávamos exatamente sobre isso: abrir os olhos. Eistein já dizia que uma mente que se expande não pode mais voltar a sua forma original, e não digo que a minha tenha se tornado realmente expandida, mas de tudo que aprendi de todas pessoas que me cercaram há algo que descobri que não posso apenas pensar ser mais uma descoberta: a vida é a maior das lições.

Pois sim, como posso ignorar tudo que senti e experimentar e pensar que posso rasgar as páginas? Logo eu, que tanto gosto de livros, e os cuido tão bem...

Talvez um dia eu aprenda a fechar os olhos como fechei há um ano atrás, mas espero junto aprender a não me arrepender disto, como me arrependo agora.

E não, não; não venha me dizer para não me arrepender de nada que faço. Isso é para os tolos. Quem não se arrepende é ou porque não faz o que deseja ou se ilude com a satisfação. Faço, talvez me arrependa, e eis a prova maior de que estou vivo.

E por que isto vem ao caso?

Pelo amor já fiz tantas besteiras, e já deixei-me tanto de lado – como quando me decidi raciocinar como minha avó. E me desculpe mesmo, vovó, mas não sei seguir a fórmula do bolo caseiro. Desculpa, mas ao invés de me iludir como marido de família, vou ter que me iludir que talvez eu possa melhorar o mundo. Querendo ou não, ambos são sonhos bobos, não é mesmo?

III

Ando pelas ruas e vejo tanta gente pacata que cheguei a fazer um gráfico percentual em minha cabeça. Tracei a reta, fiz aquelas contas que fingi aprender no colegial e cheguei a uma estranha conclusão:

Porque raios aproximadamente 78,4 % das pessoas que estão vivas esperam apenas chegar vivas em casa? Fiz uma desconstrução desta porcentagem e dados mais impressionantes surgiram. Aí estão:

34,7 % delas estão tão cansadas que sonham apenas em ter um sono tranqüilo.

52,3 % delas esperam o dia acabar – ou a segunda-feira chegar – para começar a viver. E agora vem a pior estatística de todas:

87,9 % não sabem o que estão fazendo com suas vidas.

Tudo bem que isto fecha aproximadamente 160 %, coisa que nas pesquisas usuais de opinião não existe, mas eu nunca prometi ser bom em matemática.

IV

Lembro da minha primeira aula de Linguagem Fotográfica no meu curso de Fotografia, no começo do tal 2010. Fizemos uma roda imensa, quando todos nós ainda não nos conhecíamos, e começamos aquela apresentação comum de começo de curso.

A gente dizia o nosso nome, nossa idade, qual nossa pretensão dentro da área escolhida e citávamos alguns fotógrafos que nos inspirassem. Ou algo assim. O que importa é que me senti um tolo sonhador em confessar que pretendia “trabalhar com arte, se é que no Brasil era possível”. Ou algo parecido.

A verdade é que me sinto tolo por pensar assim ainda. Não por não achar que é possível, pois sim meus caros, é uma Missão Impossível – e refiro-me ao filme mesmo, onde em todos a missão é cumprida. Digo por saber do medo que tenho. Esta coisa que emperra minhas idéias e me faz abrir mão delas tantas vezes. Me sinto um tolo por querer pensar em realizar o que quer que seja quando estou tão lúcido de minhas amarras.

Querem saber o mais irônico de tudo?

Quanto mais me dizem que posso, mais tenho medo de não poder. Existe um remédio para isso?

Talvez.

V

Uma grande amiga uma vez me deu de presente de aniversário dos meus 19 anos um livro do Zuenir Ventura, 1969 – O ano que não terminou. Um grande livro, aliás. Lembro de uma passagem que contava sobre a passeata dos cem mil, que contava como o Rio de Janeiro ficou sem luz elétrica e como mesmo assim o movimento aconteceu. Contava sobre o enterro de estudante morto pela opressão da Ditadura Militar. Esta passagem foi uma das que mais me emocionaram dentre todos livros que li.

Me pego pensando que hoje, por exemplo, juntar cem mil pessoas em prol de uma causa apenas se o Brasil ganhasse a Copa do Mundo – e do jeito que está nosso conturbado amor pela pátria, olhe lá.

Neste mês ocorreu o que considero como um dos piores momentos da história de nosso país. Um homem armado entrou em uma escolha armado e protagonizou uma das maiores matanças pós-Opressão Militar. Agora me digam, se este não é um momento para irmos para a rua pedirmos por paz, qual seria?

E não falo sobre a utopia da paz, em que todos se amam e se completam em algum mar de carinho e calmaria. Até porque em todo mar algum homem se afoga. Digo sobre a paz da reconstrução de uma base onde possamos nos apoiar quando algum coleguinha da sala nos zombar. Afinal, amigos, isto é normal. Acontece que em apenas uma sociedade descontrolada mártir é aquele que acha ser isto o fim do mundo.

Já ouço gente escandalizada com o comentário, ou dizendo aquele educado: desculpa, não entendi.

Pois bem, repito: com todo meu respeito, mas esta tal nova moda que chamam de Bullyng só é um problema para a nossa situação mal resolvida de cidade mal resolvida. Ou para fracos e doentes mentais, como parece ser o caso do nosso ilustre medroso. Quem não tem aquele antigo colega de escola que te incomodava e que hoje, se passar na rua, inclusive perguntas com sinceridade como anda a vida?

Afinal de contas, até onde sei respeito é entender porque algumas pessoas se vestem estranho, mas também compreender a maturidade mental do próximo.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

E é por isso

E é por isso que moro entre Vênus e Marte:
Um é de Milo, o outro é o do Mito da Igualdade. Um é o da correnteza, o outro é dos que têm coragem. Mas não se engane, os dois são do medo; os dois são da casualidade.

E é por isso que moro entre Marte e Vênus:
Um é o dos segredos, o outro é apenas mais uma história boa, de se contar para o travesseiro. Nada mais muda, que não o encarte. Nada mais é o mesmo depois que se entende a sua parte.

É por isso que moro em chão de Terra:
pelo cheiro de terra molhada em tarde ensolarada. Tudo não passa de chuvas de verão, então.
Que depois o mundo gira,
do dia à noite, sem mistério;
do relógio que desperta ao tempo que adormece;
do corpo que é alma
e que torna a ser corpo a cada brisa gelada.

E é por isso que moro em meu corpo,
como casa que não tinha teto,
não tinha nada - que não uma cerca fechada.

terça-feira, 29 de março de 2011

Do desmedir

Entorpecem-se todos à beira do marasmo,
na beira da beira
(não do abismo, veja bem)
de si. Quantos e quantas possuem
o medo
de si...

Não,
eu não tenho o medo. Não é esta a questão -
ou não disto, digo.
Eu possuo o contra-medo,
o não-medo,
o desmedir. Pois não, não me meço -
ou não te mereceria, não é mesmo?
Tenho a ti. O desespero calmo de sair daqui.
E a eterna fome pelo retorno.

Aí então me entorpeço;
sou muita informação para mim mesmo.

Biografia de mais uma noite Canastra

I

A noite me transforma
de sujeito a verbo
o da ação
que age
perdido em meio ao silêncio e à solidão de uma cidade encharcada de álcool e boas intenções.

À noite me vingo
e de cem passo a único
um corajoso em ver onde se está
crua e nua cidade
ou apenas um medroso
incapaz de circular onde passam todos
com seus rostos pacatos e hostis.

II

Olho para frente:
ninguém.
Aí me viro para trás e também. Percebo estar cercado por mim mesmo. Nem em primeiro,
nem em último,
nem ao menos no meio, no centro; por cima, por baixo. Estou dentro, talvez;
da sujeira do cinismo da ironia da solidão,
da ilusão do homem da cidade em pensar que da sina da necessidade da conquista sobre ao menos...
ao menos... as luzes artificiais do calçadão? Não, péssima rima, que fiz só para rimar algo que não sei dizer ao certo.
Que sobre ao menos... o Ao Menos?

segunda-feira, 28 de março de 2011

Dos Fantasmas

Eu poderia utilizar as mais
vis, mais
belas; das mais
sinceras palavras para que estes fantasmas descarados e donos de tamanha persistência se afastem. Mas não, são logo eles minhas companhias quando todos os outros não estão. São eles os das noites frias, os das bebidas desmedidas, os das insônias e palavras cometidas.
Logo, ao invés de dizer-lhes as mais
vis, mais
belas; das mais
minhas palavras, digo nada. Eles se alimentam de minhas idéias, eu os alimento.
Fomos feitos uns para os outros.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Do colo da vida.

Há dias em que eu gostaria de pegar a vida no colo, como a um bebê que precisa de atenção, e fazê-la ninar ao canto de versos de Vinícius de Morais, para dá-la um pouco mais de paz e sossego, daquele aconchego que ela tantas vezes me demonstra com seu olhar. Mas não posso, e sei que não posso, por ser a vida quem está a cargo de me carregar por aí em seus ombros. Um dia espero que ela me diga:
- Estás pronto, amigo.
E talvez ela já tenha me dito isso algumas vezes, mas o conforto de me sentir alto - que não por minhas pernas -, e o medo de ver até onde meus próprios pés podem me levar, me deixaram assim, sonolento; deixado apenas no desejo de mostrá-la o quão a posso deixar orgulhosa de um dia ter me acolhido, como sempre acolheu.
Ela acho eu estar me dizendo:
- Tudo vai ficar bem.
E talvez com um pouco de hipocrisia no tom; não me importa. Quero eu cuidá-la bem.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Mais uma carta para Maestro

Ontem redescobri o quanto estavas bem; as pessoas estão te elogiando, sabia? Fazia tempo... fazia tempo que eu não ouvia bem de você - bem ou mal, fazia tempo que eu não ouvia seu nome, e que eu não fingia não me interessar. Faz tempo, não?
Quando você me deixou aquele recado, e que cheguei em casa e a porta estava destrancada, e que entrei em casa e você não estava, e que fiquei sem saber o que fazer; quando você decidiu ir embora nunca pensei... nunca havia pensado o que pensei, antes. Foram coisas horríveis, e graças a Deus você não estava ao meu lado para sabe-las - pois você lia minha mente como se fosse um cartão postal qualquer, e não pela desimportância, mas pela facilidade, simplicidade até banal com que fazias aquela mágica.
Não sei exatamente onde você foi parar, nem seu amigo, o Rei, sabe onde estás. Ele só conseguiu me dizer que estavas pelo litoral, e que estavas bem. Ele está tentando te encontrar, sabia? Está refazendo seus passos por meio de suas deixas descuidadas do seu paradeiro; e eu não sabia que você tinha falado de mim para ele. Fiquei feliz em saber isto. Quer dizer que fui importante de verdade, e não uma daquelas que você vem, vai e deixa para trás - e por isso te escrevo isso, nunca tive uma chance de te reencontrar e dizer cara a cara o que eu gostaria de ter te dito, como fiz na última carta de mais de ano atrás.
Fico pensando se você chegou ao lugar em que queria chegar. Me lembro de nossas conversas sobre nosso - meu, seu, e não exatamente nosso - futuro. Me lembro que não tinhas certeza de muitas coisas. Me lembro o quão bom você era nas coisas que fazia - às vezes juro sentir seu cheiro na nova cozinha, e o cheiro do que você aprontava pra gente nas noites de estrelas. Ainda continuas fazendo isso? Me lembro que você me disse que isto provavelmente seria um hábito eterno. Me lembro de muitas coisas.
Tentei fazer as contas de quanto tempo passou desde sua partida, e não consegui chegar a lugar nenhum; não por não saber que faz mais ou menos um anos e quatro meses, mas por perceber que isto é uma conta que talvez - e eu espero que não - sirva só para você. Para mim faz uma vida.
Muitas coisas mudaram por aqui, mas tanta coisa continua igual...
tive que me mudar algumas vezes para tirar do meu cotidiano os caminhos que caminhávamos por passeio ou para o trabalho; por mais que por ser uma cidade pequena ainda acabe chegando às mesmas ruelas e cinemas, e lojas, e restaurantes e lanchonetes, e bares - que você não gostava muito de me acompanhar. Lembra daquela minha amiga que sonhava em ir à Europa? Está por lá agora. Finalmente conseguiu. Bom, não?
Apesar das mudanças, ainda continuo com os mesmos sonhos bobos. E espero que continues com seus bobos sonhos também. Não há nada como eles para nos lembrarmos de onde viemos.
Foi um tempo bom, aquele nosso. Nunca havia pensado que eu sentiria tanto a falta de alguém que conheci por causa do Acaso - por mais que, convenhamos, todas as pessoas que conhecemos, direta ou indiretamente, são vítimas do acaso; mas você é diferente, e você sabe disso.
É uma pena que eu tenha que guardar na gaveta tudo isso; talvez eu tenha sorte do Rei entrar em contato comigo novamente para eu poder entregar isto para ele, para que ele possa entregar isto para você - por mais que eu não tenha certeza quanto a querer novamente te ver, não sei se eu teria estrutura para aguentar mais uma partida sua, ou mais algumas palavras suas. Conheci o inferno uma vez, e não é um lugar que me daria o prazer do passeio novamente.
Me lembro que uma vez sonhei que a sua partida tinha sido apenas um sonho; quando acordei e percebi não consegui sair da cama por dias, pelo desespero de querer voltar onde estávamos tão bem, rindo e falando sobre nossos relacionamentos difíceis e complicados.
É, talvez eu não te envie isto; verdades demais não fariam bem e só machucaria meu orgulho. Você sabe que Eliza's possuem um orgulho superior a tudo, e eu principalmente...

É uma pena.
Mas a vida seguiu em frente,
e fiquei feliz de saber que estás bem.
Fique bem,
Eliza.

terça-feira, 22 de março de 2011

Mais uma carta Canastra

Houve um dia que jantar sozinho me era prêmio. Que ir sozinho a lugares era uma conquista. Que dormir sozinho em casa era excitante. Que o silêncio sozinho me era calmaria.
Me lembro de quando criança em dias de chuva gostar de voltar andando sozinho para casa só para poder pisar nas poças de água que se formavam na beira da estrada, ou pelas estradas de terra que eu utilizava como desvio para um caminho mais longo, só para aproveitar um pouco mais dessa aventura que era estar por minha conta e risco no mundo que todos me diziam ser perigoso e estranho, dos homens estranhos e perigosos de balas doces oferecidas, e todo o resto.
Engraçado como a vida é.
Hoje os jantares sozinhos são suplícios. Os lugares sozinhos, hostis. Minha cama sozinha, insônia. O silêncio, inexistente; hoje há o medo do silêncio; da morte chegar e você nem poder perceber algum olhar triste em sua direção. É patética a desculpa, eu sei; todos sabem; mas ninguém quer morrer sozinho.
Hoje, meu bem, estar por minha conta e risco tornou-se desventura. O trabalho, o bar, a casa, o sono relutante - ou o prazer do prato do dia; o trabalho.
Hoje... amanhã... afinal, nem todos tem a sorte que você tem; de não ter visto o que vi, do modo que vi, com os olhos que vi, e da posição que vi. Não digo ter sido demais, pois aguentei e sim, meu bem, estou vivo. Mas perdi a receita do bolo, o trilho, o bonde das oito, e agora só amanhã de manhã, como diz o samba. Pois eu entendi: na verdade ele não quis dizer amanhã de manhã, simplesmente. Ele quis dizer sobre um novo raiar, depois que a noite passar. Talvez na próxima vida eu pegue o bonde, nem que seja ele andando; pois nessa o vi quando já estava no horizonte, e parei para assistir simplesmente por dar uma bela e única fotografia.
Talvez na próxima vida, quem sabe; quem sabe, meu bem, na próxima vida tenhamos mais sorte.
Quem sabe...

Com amor,
o céu, o chão, e tudo, tudo que eu poderia ter nas mãos, se não. Mal sou meu, pois sim...

segunda-feira, 21 de março de 2011

Biografia novamente Canastra

A sordidez é mais simples, é mais prática, por isso custa mais caro. Ando pagando o preço, eu sei; as noites e as noitadas; os dias e as cansadas pernas, os cansados olhos dos sorrisos cansados. Não tenho esperado mais que isso, e acho que na realidade nunca esperei mais que isso. Continuo esperando por isso; continuo esperando por aquilo das incontáveis vezes que contei e recontei a todos que ainda tem coragem de dar-me mais uma chance.
Em terra de Reis e Maestros, Canastras não possuem vez. O que posso eu oferecer que estes outros não tem? Tenho a pose, apenas. Tenho as palavras, apenas. Tenho minha imagem, apenas. Os outros também. Eles não se dão ao luxo de darem-se à luxúria. Eles se dão ao luxo dos restaures caros, das roupas caras, dos carros e lares perfeitos. Eu apenas gasto com o sujo. Espero encontrar na lama alguma lótus que não morra em minhas mãos - como todas as outras que tentei acolher em meus vasos caseiros, tamanha solidão. Não que onde eu more traga diferença de onde elas nasceram, mas elas não são dali; elas não nasceram para ser dali. Nasceram para a luz; a mesma que machuca meus olhos na manhã seguinte e queima minha pele regada a luz negra e neón.
Por que eu deveria me importar, mesmo? Tenho o prazer em uma das mãos e minhas palavras na outra. E é tudo que tenho desde que partiste. Isto, Reis, Maestros e é isto.
E é isso.

E é isso
tudo que tenho
desde o medo
à euforia.

E é isso
das palavras
que digo
à eutanásia concordada.

E é isso,
pelo visto.
E a compaixão
dos tolos.
E os olhares
de ontem.
E os santos
tão pacientes com meus pesares.
E as santas
de bolso,
de meu bolso estrategicamente rasgado.
E meus dedos
imageticamente imaginados entrelaçados
em teus meios.
E minha imaginação
embora distorcida,
não errada ou obsessiva.

Desculpe,
mas é tudo isso
tudo que tenho.
E não me parece justa uma troca de tudo que tenho por um pouco de realidade. Não me parece - e nem é - o bastante. Sou cachorro de rua querendo adotar outras dores para confortar, fazê-las delas minhas e passar a mão em sua cabeça, como se passasse em minha - pois meu orgulho incessante não suportaria outro fazendo isto por mim.
Sou da lama confortável, afinal. Afinal é a luz muito forte, e me queima as idéias - com acento, por favor!
Perdão, irmãos;
mas é isso tudo que tenho:
um terrível clichê.

domingo, 20 de março de 2011

Sombrancelhas

Enquanto meu corpo torna-se o exato oposto do que vejo, meu rosto cada vez mais toma forma de tudo que mais tenho medo, tornar-me outro. A cicatriz de quando caí, a cicatriz de quando briguei, as cicatrizes da ingenuidade, a falta de barba e esta barba faltosa, mal feita. Os pés de galinha e olheiras. Os furos que fiz, os que ainda não fiz e a corrente que me acompanha desde que me tornei gente. Os cabelos descoloridos, pintados, cortados, picados, errados; meu nariz escorrendo da gripe que me assola há anos; meus olhos caídos de sono não dormido por sonhos mal e mal sonhados, e vis bem-vindos; minha boca tossindo no meio de um treino de Ei, Estou Sorrindo...!; minha orelha torta de nascença, pois nem para nascer consegui ser prático. Tive que me agarrar ao cordão umbilical, negando o mundo três, quatro, cinco vezes. Resultado: vim, e ganhei a tal orelha, e agora penso que meu pescoço ser fino é mais uma consequência de minha tentativa de enforcamento precoce - pois sim, devo ser alguma reencarnação de algum fraco, medroso, que pôs fim a sua vida da mesma forma com que a ela nasci. Faria sentido.
Minhas sombrancelhas, gosto de minhas sombrancelhas. Apesar de tudo, gosto de minhas sombrancelhas; e de minha pinta logo abaixo de meu olho esquerda - coisa impossível de notar aos que ou estou longe demais ou perto e ocupado demais. Mas não, não faço minhas sombrancelhas.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Mas não é bem assim

Não,
mas não é bem assim.
Por tantas vezes
a tal liberdade
já vesti como um espartilho
em mim.

Destes tais discursos
o que me resta é a casa vazia,
dos sonhos imensos
em meio a mar sozinho.

Da loucura
o que me resta é a sobriedade
do dia seguinte
dos sonhos desejos.

Das vontades
que me possuem é a vã selvageria
dos copos meio cheios
meio vazios.

Meio que já não possuo
nem máscara
nem pele.
Ando com carne exposta
de marcas do tempo
sem nenhuma vergonha,
apenas.

Mas já não sei o que dá em mim.
Até pensei ser desespero,
mas não é.
Até já pensei ser medo,
mas por tantas vezes não é.
Já pensei ser semente
do que nunca será.
Então me deparo em não saber o que dá em mim.

domingo, 13 de março de 2011

Nada não, melhor:

A gente exige
luta
compreensão
pão
e um pouco de tudo que vocês tem nas mãos.

A gente só quer o sossego
andar de iate por volta das três
sequestrar nosso amor para dar uma volta em Paris
ter o que dizer quando chegar a nossa vez.

Da vida de novela
só levamos a de freguês da padaria
destes sonhos eternos,
mal-resolvidos
de o que é querer o que se vê
sem ter que dar pedaços de nós mesmos
em troca de um pouco de prazer.

Vocês não sabem de nada,
nada não,
e se dizem tão bons passeando com seu Rolex.

Vocês não sabem de nada,
ou melhor,
nada não,
não sabem de nada quando
impõem seu refrão
Pátria Amada Brasil,
um país de todos,
que não os do chão.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Da janela da sala

Não,
o que vejo pela janela não é chuva;
são as flores caindo,
é o verão se despindo em inverno.
É a alegria dizendo: e lá se foi mais uma estação. É a alegria dizendo:
- Te lembras? Ainda tens tempo nas mãos.
É a pétala deslizando,
é a tristeza.
É Vênus de Milo e Marte sorrindo,
é a ironia do destino.


Não,
o que vejo não é o que vejo.
É o que o mundo se tornou,
é o vento da noite transformando-se em manhã,
é o amanhã que nunca mais verei como ontem,
é o velho,
é o eterno,
é o sem nome para o que chamam de amor
que em sí possui um nome dito por tantos
mas não dito mais por mim por rancor.

Não,
é certo que já não sei mais o que vejo.
Chame como quiser,
pois chamo eu como quero.

Não,
é certo que já não sei mais se quero.
Pois sim, me rendo
ao tear das três irmãs.

Da ausência.

Há uma certa saudade
em matar a saudade.
Pois minha loucura tem pé,
cabeça,
mãos
e olhos gentis.
Tem nome.
Tem saudades,
e me mantém vivo durante a noite.


Há uma certa ausência nesta ausência de mim para mim mesmo.
Quem sabe seja de mim, também,
ainda que esta não seja a ausência maior.
Eu me sinto falta,
mas que falta fazes, ainda.



Ainda há a ausência.

Des-depois, parte I

O caótico disto tudo é que ando fazendo isto tudo por um motivo. As coisas que faço, as coisas que digo, as coisas que me tornei; o tal que me despi. Quero aparecer nas capas de revistas, jornais; na televisão em entrevistas; por todos os meios para mandar um recado para você. Nas exposições terá você, no livro terá como agradecimentos, você. Vou dizer:

“A você,
para te dizer sobre a saudade,
para te contar sobre desde então,
desde que esta tal saudade apareceu;
é isto que tenho feito, ininterruptamente, para lhe dizer
o que tenho feito
do que tenho andado
sobre o que tenho pensado
de quanto me arrependo.

Este livro é para você.”


Vou dizer isto, com seu nome no topo. Nome e sobrenome, e apelido, e endereço, e ocasião.
É frustrante, eu sei. Me frustra saber disso, que ando fazendo tudo isso para o clímax ser chamar a tua atenção, ouvir teu esbravejar. Mas tive azar; nesta vida fomos postos deste lado – um oposto ao outro. Nas anteriores como pode ter sido? Alguma delas deve ter sido extremamente feliz, para tornar-se este carma. Até me pego pensando que esta é a última que nos encontraremos: depois disso é o infinito. Tomei como ultima prova imposta, afinal: não há nada maior que o amor, se não o desamor, e encontramos exatamente as duas munidas de cada uma, um.
Nunca antes escrevi tantas incertezas, tantos “talvezes”, tantos “issos, distos” - pois não, não sei chamar do que chamam, por medo, vergonha talvez. Talvez. Talvez vergonha disto.

Viu? Incertezas.
Certezas? Combustível. Tem se tornado combustível.


II


Sou obrigado a reler tudo em voz alta, junto de meus venenos em mãos, só para ter certeza de que disse isso algum dia.

...Ao menos mais uma certeza.

terça-feira, 1 de março de 2011

Des-bEla, parte I

Será que vou sentir sua falta, como você provavelmente vai sentir falta minha? Talvez.
Me lembro de nós dois uma vez no parque, nós deitados na grama seca, como personagens de alguma trama feliz. Eu acariciando seus pêlos dos braços e de sua barba mal feita, tentando chamar sua atenção enquanto tinhas um olho em meus olhos e outro nas bundas bontas que passavam.
Sabia da tua necessidade de ser de todos; a entendia; mas naquela tarde, ao menos naquela tarde, te queria inteiro pra mim. Nunca conversamos sobre isso. Deveríamos ter conversado sobre isso?
Talvez.
Assim como eu gostaria de ter te dito coisas naquela vez, a primeira vez em que dormimos juntos em seu antigo apartamento. Não eramos um casal, eramos apenas bons conhecidos, quem sabe amigos; nem lembro o que nos dizíamos enquanto deixavas teu celular tocando músicas que gostavas, e que eu gostava também. Naquela época eu sabia que tinhas uma no teu coração, que não eu; Enquanto eu já estava descobrindo que estavas entrando arrebatadoramente no meu. Mas eu também tinha outro, mas que não sabia nada mais que entrar em minha boca, ou em minha vagina.

Nos conhecíamos há meses, tínhamo-nos confissões feitas. Lembras quando nos beijamos pela primeira vez?
Talvez.
Eu lembro.
Foi em um sonho lindo.
Você estava sentado em um sofá bege de três lugares, com uma porta de quatro águas de vidro de correr que dava em uma minúscula sacada, com um visual de prédios da Grande-Cidade-Grande, e movimentada.
As cortinas dançavam envergonhadas enquanto a luz de um sol de 10 da manhã esquentava o piso cerâmico, e seu rosto. Estavas com olhos gentis, como de quando me olhavas antes. Estávamos envergonhados, parece que tínhamos brigado alguma briga de vida inteira.
Andei até perto de você com cautela, pois por algum motivo aquilo tudo parecia ter sido minha culpa; me sentia com culpa. Me sentei ao seu lado, me olhaste e me disseste com a mesma gentileza dos seus olhos:
-
Tudo bem.
E me beijou.
Talvez tenha sido isso. Talvez minhas espectativas estivessem muito além em relação a nós dois. E digo “a nós dois” pois, apesar de tudo que me dizia e reclamavam ao seu respeito, era você quem eu precisava ver ao final de nossos dias que conhecias tão bem.
Sempre me ajudaste a carregar meus pesos. Garoto,
será que vou sentir falta de você como não acho que vou sentir?

Agora já não importa. As malas estão feitas, as passagens estão compradas e nosso adeus está sendo dado. Obrigado pelo adeus, ao menos; foi uma bela tarde, está sendo uma bela noite e o dia está raiando.