quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ultima biografia de Canastra - parte 0

Decidi por uma noite diferente. Sentei-me num bar tranquilo de pessoas de etiqueta mais apurada onde a impossibilidade de fumar fez doer o saco. Maldita lei nova, esta. Hipócritas sem causa, e radicalizo sim: os homens estão pouco se fodendo para a fumaça e as mulheres apenas se incomodam com o fedor de seus cabelos. Esta modinha de preocupação com a saúde tornou-se pública e assunto em mesas de bar por causa da beleza que é, então, começar a dizer isto com algum tom de sabedoria - do que, me desculpem, ser óbvio.
Mas tudo bem. Novo emprego, terno, uma faxina em casa. Não estava me sentindo eu mesmo, então porque não completar o papel de tolo boneco do sistema infantil e atuar com, ao menos, um bom whisky - que me desculpem os preocupados com a saúde pública e o ecologicamente correto, não precisa deste guardanapo no copo.
Esta roupa correta me deixava em minha idade correta, e minha perna entrelaçada me deixava ligeiramente e perceptivelmente mais chamativo aos homens e às mulheres que, de algum modo muito estranho, acham esta feminilidade do masculino charmoso.
Eu gostaria de saber o que há de divertido nesta coisa de ficar em luz romântica quando a vida não é nada romântica. Não só a minha, não; a de ninguém. Esta meia-luz apenas prova que, na realidade, mostrar o rosto inteiro logo de início é um temor aos que procuram um amor para a vida inteira. Nos lugares onde vou é escuro, mas ali ninguém está muito preocupado com o que vai encontrar quando as luzes finalmente se acenderem. Eu realmente não sei aonde estava Eu quando resolvi ouvir o D'ócio. Ele está certo, mas estaria ele certo para me dizer algo quando a vidinha rotineira dele absorve mais poluição que ele pode expirar?
E esta... esta... "música"? O que há de errado com ela, ó, céus?! Minha sensação é de que estou preso num elevador gigante que quebrou no andar da falsa moralidade. Todos os sorrisos trocados e a sensação de que alguém vai sentar aqui e conversar sobre como o tempo está louco hoje em dia. E todas as pernas se esfregando por baixo das mesas dizendo sexo enquanto o rosto aparenta uma expressão terrível de desespero por a idade estar avançando e estarem todos eles morrendo de medo de morrer sozinhos.
Ao menos o garçom é gente boa. Ele, após uma hora, já entendia que o copo bastava chegar a um nível crítico de esvaziamento para ele já me providenciar um refil para minha sanidade. O que me incomoda é o fato de ele estar pensando que levei algum cano, e isso fica claro em cada sorrisinho de compaixão. Oras, tenha compaixão por ti mesmo, vontade de dizer; não sou eu quem está tendo que servi-los todos!

Duas horas ali sentado foi o bastante para mim. Deixei aquele lugar metade do que pretendia ficar bêbado gastando o triplo do que me era usual. Minha sorte era que eu estava a apenas uma boa caminhada de casa, e não que caminhar a esta hora - que de acordo com meu novo celular marcava pouco mais que uma da manhã - fosse necessariamente uma boa idéia, mas de más idéias a semana já havia estado cheia.
Pude, finalmente, fumar um cigarro. Pude, finalmente, não sentir-me vigiado pelos bons olhos da sociedade bonita e socialmente suja e aceita.
Pude me sentir marginal novamente. Um ex-marginal sem causa, sem palavras para chegar em casa e desenhar. Tornei-me Eu sem mim; lobo em pele de cordeiro, como dizem; basicamente um mentiroso que mente para si, um ignorante; e minha gravata estava me matando. Como um ato de boa fé, tirei-a e joguei fora ali no meio da rua.
Engraçado: sempre me senti cansado por levar o apelido que o Rei havia me dado; mas ao menos minha consciência não doía. Agora não, agora estava diferente. Era cansaço que vinha de carregar o peso de não poder-me ater ao que eu sempre pensei que tudo seria: aquilo tudo que estava sendo antes de minha péssima idéia de querer figurar o cara comum e para bom casamento. O Rei nunca havia entendido isso, mas acatei suas idéias como servil de sua monarquia de pudores. Acabei, com o tempo, sentindo medo de voltar à minha pele; o conforto dos cabelos arrumados e da roupa arrumada e de ser gentilmente atendido ludibriou minha vista deturpada.

Cheguei em casa, tirei minhas roupas e o calor me fez negar até mesmo os lençóis. Meu caderno ao meu lado, com caneta posta ao lado, ambos me pedindo um pouco de atenção. O abri e, pela data, a última vez que o havia dado motivos de alguma alegria fazia tempo demais para que eu conseguisse me conformar.
Imagine tudo o que você pensou ser se desintegrar pela rotina?
Imagine, apenas.
Tentei me masturbar, mas não haviam motivos e nem vontade. Tentei ligar a televisão, mas a desliguei cinco minutos depois. Tentei ler algum livro, mas o fechei ao ver meus rascunhos e me pegar pensando novamente em tudo que já havia pensado. Fechei os olhos e os abri após sentir uma leve fisgada de pânico.
Eu, que nunca pertenci a lugar algum antes, agora finalmente consegui a última conquista de minhas grandes atitudes contra mim mesmo: deixar de pertencer até a mim mesmo.
É de rir, mas o pior é que ainda tenho que ir trabalhar amanhã com as roupas corretas e andar com o celular de linha nas mãos como que dizendo:
- Viu?! Eu sou como vocês, eu venero o sistema!

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