segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Biografia da gota.

A garoa está tão fina que mais parece névoa grossa. De singelo barulho;
barulho quase sagrado, estancado pela música que resolví impor em meus pensamentos nada respeitosos. Estou cansado, graças a Deus; cansado tanto na alma quanto no corpo de 13 horas pós-bico para sobreviver - me valeram um sustento tão temporário quanto o emprego pós-demissão.
O que a mulher dizia no pé do ouvido rasgava tudo que poderia estar inteiro, fazia e abria minha boca, gesticulando as palavras que, por muito pouco, não estavam cantando.
A garoa ia caindo cada vez mais rápida, e eu, num antigo ponto de ônibus - daqueles da época em que eram de concreto e de cheiro de mijo - só assistia o processo. E de garoa em garoa, veio a chuva.
Fazia tempo. Fazia tempo que eu não prestava atenção em algo puro e verdadeiro como isso. É raro algo como isso; isto: de realmente perceber algo como isso.
Tão raro que agradeci quando o ônibus se mostrou na curva. Tão puro que eu não me sentiria confortável com aquilo por muito tempo.

O ônibus também era dos antigos. Chão metálico, barulhento, cheio dos tilintares e crec crec's. Dos quarenta e tantos lugares disponíveis, uns 6 estavam ocupados.
Homem negro, homem branco, mulher parda e criança parda faziam a frente, espalhados, na parte da frente. Lá atrás: ocupado por um casal esfrega-esfrega-risadinha.
Sentei entre o homem negro e o homem branco, à esquerda da mulher parda e bem longe da criança. A chuva não estava a distraindo como deveria. "Deveria?", pensei. E deixei de raciocinar e apenas acompanhar as gotas que se deixavam escorregar pela janela aberta em frestas.
- Deixa a máquina respirar. - foi o que a mulher parda me disse quando tentei fechá-la completamente, logo quando sentei.
- Ok. - foi o que consegui responder. E deixei assim mesmo.

O sono já estava me pegando forte. Teria uma pequena viagem do bico à casa. Não sabia que a cidade era realmente tão grande. Minha cabeça, desconfortável naquele bate-bate de cabeça-janela, ainda assim preferia o cochilo. O barulho de metal batendo, de chuva batendo na máquina, da máquina combustando e andando, fazendo curvas, e...
foi me levando e, quando dei por mim, preferia a vida.

domingo, 26 de outubro de 2008

Biografia do conselho

Nada é questão de merecer, tudo é questão de analisar
a opção certa,
a pessoa certa,
a coisa certa a se fazer. A ser feita enquanto há tempo.
Há tempo, então analiso para poder chegar a um caminho prático, fácil, simples. Sem entre linhas.
Sem subjetividade.
Minha avó já dizia:
"Conselho de mãe é conselho vidente". Resolví seguir.
Hoje tenho a vida montada e estruturada. Trabalho em uma ótima empresa, ganho um bom salário, moro em uma grande cidade, tenho dias bons. Domingos para descanso e organizar o resto dos dias, dos papéis, das comidas, da cama pouco usada.
Combato o Vazio com um Vazio bem assado às Sextas-Feiras. Lei.
Não bebo e não fumo, pretendo viver bastante. Pretendo ter carreira de sucesso. Pretendo ter uma casa distante da cidade grande. Pretendo ter família bem constituída. Pretendo que eles tenham vida mansa, assim como tinha na antiga cidade que morava. Pretendo, quando tiver a minha realização profissional, largar tudo e viver calmamente.

Minha mãe morreu quando nascí. Mal pode me dar nome. Disse a minha avó que queria escolher o nome quando olhasse no meu rosto. Não pode, então meu pai que escolheu.
Adamir.
Ele me explicou que Adamir significa "Pai ilustre". Nunca entendí, quando 8 anos, o porquê de raios alguém dar um nome desses para um filho.
Com 10 ele desapareceu, deixando uma carta. Então entendí.

Essa história me deixa nostálgico. Nostálgico em relação a imaginar como poderia ter sido.
Nada como a vida prática de uma Quarta-Feira...

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Biografia do pouco.

Eu posso ser poço,
posso ser poça.
Sou metade.
Metade de tudo aquilo que tenho coragem de.

De tudo aquilo que tenho vontade em conhecer sobre o que é um alguém.
De quem não tem medo de perder,
também por várias vezes irá medir o tempo da eternidade
de quem não tem nem Se.


Eu sentia que estava prestes a ser despedido do trabalho. Ia, mas não resolvía. Não adiantava ter alguém sem... sabe, utilidade. Fazia tempos que tinha voltado a minha velha forma e nem sei como ainda estou por aqui.
Faz tempo?
Perdí a noção de tempo.
Mas parece que faz tempo sim. Nem sei. Isso aqui tá me matando. A minha casa também pode ser mortal, no seu nível. A rua pode ser mortal, no seu nível. A minha vida é mortal, indefinivel.
Graças a Deus que meu corpo tem algum tipo de subconsciente, que trabalha por mim sem o mim trabalhar verdadeiramente. O meu corpo vai e eu vou atrás.
O meu corpo está digitando a carta de demissão. E mim não está nem um pouco contrário.
Enfim poderei sofrer de férias e ressacas sem preocupações.
E só não mando todos tomarem no cú por simplesmente ainda acreditar em boas relações para o futuro. Sim, porque, acreditem ou não, eu ainda acredito no futuro. Só, por favor, apaguem a luz por enquanto, e saiam de mansinho. Por enquanto preciso ter uma dose de... tudo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Bioconversada.

- Pode parar! - mandou o pedinte.
Parei, olhei. Continuei olhando.
- Pode parar! - exigiu o pedinte.
Continuei parado, daí resolví dizer alguma coisa.
- Alguma coisa aconteceu? - foi o que me sobrou.
- Não.
- Não? - e já me perguntava o quão absurda a cena parecia aos outros.
- Exatamente.
- Exatamente como?
- Não aconteceu nada. Quer dizer, você parou quando eu pedí. E pronto.
- Ah.
- É.
O pedinte continuou sentado no parapeito da janela térrea daquele prédiozinho velho de esquina.
Eu continuei esperando algum insite cerebral.
- E agora?
- Agora o quê? - perguntei.
- Parou, e agora?
- Não sei, oras!
- Parou se eu pedí.
- Não, não. Você berrou!
- Sim, tá. E agora?
- Agora vou continuar andando, oras.
- Vai para casa?
- Vou.
- Comer?
- Ahãm.
- Tomar um banho, colocar o pijama.
- É, por aí sim. - não gosto de usar pijama.
- Ah, então tá.
- Então, é isso?
- É, isso.
- Então tá. - e continuei andando, oras.
"Vai entender!", pensou.
- Tá. - continuou no parapeito surrado, de roupas surradas.
Talvez um dia entendesse.
E a noite percebeu seu papel.

sábado, 18 de outubro de 2008

Biografia rápida de um instante.

Chamam de Sociedade um conjunto de número incerto de Pessoas.
Eu chamo de Hipocrisia.
Eterna Hipocrisia Desmedida é seu nome científico, para ser mais exato. Nesse mundinho eles acham que emitir sons é emitir idéias. Pobres...
um mundo em que o silêncio é generoso quando acontece.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

PhotonGrafia, parte 1.


Biografia na rua.

Todos passam.
Seus rostos
sem medo, sem ternura, sem coragem
nem maquiagem.
Passam, não deixam rastros. A má vontade,
ou a boa vontade,
apenas não passam de falta de vontade. De falta de descanço.

Cansa.

Estão cansados, seus olhos quase fechados.
Seus passos: cansados.
Todos passam.
A vida passa.
É a vida.
Todos passam,
sem vida. Exaustos,
estão cansados do dia,
estão cansados da vida,
estão sorrindo. Estão exaustos,
e o dia, enfim, termina.
Os sorrisos são tristes, estão tristes.
Ou apenas cansados, e cansados seguem ao lar.
Lar do canto do amor sem dor, sem pranto, do canto insassiado.
- A comida está sem sal.
Até a cerveja gelada lhe faz mal. Que mal?
É o tal.
Mas todos ainda passam, não param de passar
até que eu mesmo não pare de passar
pelos passantes da rua da qual o horizonte não me parece tão distante. É de pedra suada.
Da rua da qual a normalidade é séria
e os risonhos são loucos!
Mas a normalidade está doente,
cansada.
Os insanos são normais que apenas deixaram a desejar e desejaram. Desejaram. Agora
apenas sorriem para afastar os maus agouros
da vida.
Os normais: insanos.
Ou apenas estão cansados.

Parei.
Eles pararam de passar.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Biografia da Bunda Mole

A bunda daquela negra tentava ser artefato de desejo caro. Pena que bunda mole nunca ganhou nada que centavos doados. Pena que estava com pena de mim mesmo. Uma pena.
E isso me lembrava daqueles milhares de penas de pequenas águias à beira-mar de um oceano que fui visitar no último verão. O oceano estava pacífico. Fazia das ondas um acaso raro, sem raiva nem vontade alguma de se fazer sentir algo. Só sabia que era mar pois o nome do lugar levava Praia no começo; se não, por mim, para mim era lagoa mansa.
Mansa como o ar - que me nego a chamar de vento, ou brisa, de tão mansa. Mansa como minh'álma, cansada o bastante para esquecer de reparar na realidade do dia-a-dia. Por isso tinha vindo visitar o mar. Para relaxar.

E a bunda continuava na vitrine; rebolando, dançando. Mole.
Era uma casa no meio de ruas que poucos se atreviam a visitar, mas que ainda assim possuía seu estilo. Ao contrário da bunda era muito elegante. Ao contrário da bunda: era...
firme. Tinha anos e anos, mas firme. Era, a casa, famosa na cidade. A bunda não. A bunda era nova.
E não me restou nada mais a fazer do que aceitar o acordo monetário. Os Drinks me ajudariam a fantasiar o que eu quisesse. Por mais que me parecesse mais barato pagar a mais cara e não gastar com a casa, ao invés de gastar com a casa e gastar na barata e novata.
E era isso o que me restava. Mas isso era o que me sobrava.
A bunda mole.

Admentindo Biografia

Preciso de uma fagulha.
De um antro.
Desculpas,
preciso de desculpas.
Mentiras, admito.

Sem isso ou aquilo,
sem desperdício.
Admito,
admito: minto.

Precisa-se de vendedor, diz a placa.
Eu preciso de um comprador dos anos
das dores,
dos antros,
de tantos mantos perdidos.
Mas eu minto,
acreditas?

Eu minto descaradamente.
Admito!
Nem cara descaro. Nem cara tenho.
Nem o peixe alimento,
quer que eu alimente tua alma!
Que gana,
que força. Que coisa!

A máquina, a máquina, a máquina, a máquina,
eu.Sem descanso,
sem descaso, descalço.
Nú, na vergonha, sem delongas e entendendo xongas!
Nem ente querido,
nem pente perdido.Procuro o quê?
- Acho quê. - Achas tanto!

No tapete, puxa!
Admito:minto.

Puxa!

Puxa, que isso?

Puxa. Desisto.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Biografia típica

- Ei!
Quando olhei, mal reparei, meu rosto já sentia-se dolorido. Seu soco era pesado, e o chão estava molhado.
- Foi você?
Eu entendia, mas tudo estava sendo rápido demais. Meus músculos não acompanhavam as minhas idéias, então logo a mesma mão veio me puxar do colarinho.
- Foi você?
O barulho, as pessoas. A bebida estava forte. O efeito estava forte, e o soco fora, de fato, forte.
- Não vou perguntar de novo. Outro soco, agora no estômago, quase me fez vomitar as bebidas caras que meu bolso ainda sentia falta.
Conseguindo recobrar a consciência, me disvencilhei.

.

O dia estava horrível.
O dia estava morno, minhas costas estavam suadas, meus olhos estavam irritados.
O dia estava realmente uma merda.

Chego em casa, finalmente. Tinham acabado com a cerveja, tinham acabado com o beck e o conhaque barato estava no fim. Era o fim!
- Puta que me pariu, viu? - eram as únicas coisas que insistiam em sair da minha boca toda vez que olhava para aquela geladeira vazia.
O banho gelado só piorou.
Eu precisava de algo forte. As idéias não vinham.
O barulho do lápis batucando no vazio. Da geladeira. Dos passos lá fora.
Eu precisava de algo forte.
Saí.

Mas peguei minha jaqueta surrada, talvez esfriasse.

.

A porta estava aberta, como sempre.
Nada me impediria. Nem a porta, nem a falta de grana. Nada. Era esse o recado:
Nada me impediria.

E quando percebi...
ela pulava no meu colo como uma lebre fugindo de dentes que saberia muito bem: a comeria de um modo que ela não gostaria. Ela não gosta nem agora, mas sabe que poderia ser pior. Sabe que estou sendo bonzinho.
Sendo que nem eu mesmo sei aonde estou.
Que nem sei mesmo quem sou.
Aonde estou.
Ou onde estou. Nunca fui bom em gramática.
Mas as professoras sempre gostavam de mim. Os professores não.
Ela sabia que poderia ser pior, por isso continuava pulando. E as únicas coisas que eu conseguia dizer eram: "continua, continua".
A música não demoraria muito para acabar.
A porra da música tinha horário marcado. E namorado.

Passei pelo corno na saída do prédio. Engraçado.
"O que ele faria se soubesse?".

.

Voltei para meu caderninho.
As cervejas não reaparecem, muito menos o beck. Me apreoveitei do conhaque.
O caderno surrado me entendia, sabia que eu teria de abandoná-lo aquela noite.

Saí.

.

Me disvencilhei e corri.
E rí. Resolví voltar a honrar o apelido Canastra de ser.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Biografia do baque

Às vezes, como agora, me bate uma saudade. Aquela agonia escondida em um lugar que ninguém sabe onde é, só que perto do coração o é. Acontece que teimam que o que dói é o coração, mas como vão saber?
Essa nova cidade é interessante. Mas quente, extremamente quente. Meu apartamento, que até é bem localizado e ventilado, fica insuportável a noite. E os mosquitos? Enche!
É muita rua, muita gente - que devem estar em algum outro lugar agora. É verão. Para muitos férias, mas para mim não.
É muita fumaça, e provavelmente muitos carros - não tenho como saber, estão na praia junto com seus donos, ou estacionados, esperando.
Muitos prédios grandes, muita luz quando não deveria ter. Muito barulho quando não deveria ter. É grande.
E tem muita gente. Muita gente diferente, que eu nunca ví, que eu nunca seria como.
E aí bate aquela saudade daquela cidade que era cidade, mas também casa. Sem quantidade variante dependente da estação. Não era pequena, não sinto diferença nisso. Só era mais... conhecida. A cidade, grande, cidade grande esta, não passa de escritório-quarto-padaria e supermercado nos finais de semana. E uma praça grande demenos para um chafariz grande demais.
E aí dá aquele aperto. Mesmo quando penso que não teria porque continuar na antiga cidade pequeninamente grande. Mesmo sabendo que saudades de hábitos não existentes não são saudades, mas falta daquilo que eu nunca tive, ou soube ter.

Não sabia que seria assim.