domingo, 21 de dezembro de 2008

Biografia entre mim e Machado.

"A escola era na rua do costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia - uma segunda-feira, do mês de maio - dexei-me estar alguns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diego e o campo de Sant'Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que era melhor a escola. E guiei-me para a escola. Aqui vai a razão." (Machado de Assis)
De chinelas arrastando, segui o rumo da estrada de barro. Nem cuidava em deixar os pés limpos, queria mesmo era sentir o que a tal infância me permitia: a inocência. Sabia dos perigos do tempo; já havia visitado a capital.
Chutava de pedra em pedra, provavelmente. Concorria comigo um jogo próprio - ainda era possível, infelizmente, chegar fora do horário. E, aqui, faço uma breve pausa para mostrar como as decisões do cérebro são frágeis às do coração. Nos quatorze anos todos deveriam se permitir à vida. Ainda mais se soubessem por quais trincheiras iriam.
Pena que as vizinhanças conheciam mamãe. No lugarejo a maioria se via como família - parente valente, parente serpente... era independente.
Por cada casa, um cumprimento. A cada cumprimento, mais perto das grades de pau.
Hoje sei: ter me feito um tolo teria me custado as palavras que aprendí a escrever, mas que infinitas vezes me faltou tempo para dizer.



Redação Vestibular CEFET/SC - unidade Florianópolis.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Entre-linhas leva tempo.

o tempo que passa. uma estrutura com base e teto.
o tempo que passa. uma estrutura com base.
o tempo que passa. uma estrutura.
o tempo que passa. um.
o tempo que passa leva o concreto.

ô tempo que passa, leva.
leva, tempo.
leva.
só não brinca de super-herói pelo pátio, não finge que sabe voar. Acabas aprendendo.

domingo, 30 de novembro de 2008

Entre-linhas, parte 6.

Sinhô,
a culpa não é da chuva, sinhô.
Se o morro desaba,
não é por causa da água, sinhô;
não amaldiçoa a chuva.
É o hôme, sinhô;
é por causa dos teus atos, sinhô.
Não tenta tirar a culpa das tuas costas, sinhô.
Foi o sinhô, sim senhor!

Biografia sem destino

Sempre existe o ir e o vir; sempre vai existir. Os bancos sempre estarão aí para quem espera por alguma partida, de alguém ou a sua própria ida. Me gritam que é a vida.
Um ônibus velho, pintado de algum verde duvidoso, acabava de estacionar à alguns boxes donde eu estava. Era o meu. O lugar estava tão cheio que nem para sentar dava, então resolvi roubar o lugar de alguém que deveria estar aqui. Onde eu estava, estava vazio. Indiscutivelmente vazio. Até o cigarro, ainda entre os dedos, estava apagado, sem vontade alguma.
Na mochila eu levava utilidades; na mala, roupas. Comum a todos. Na minha cabeça eu levava a idéia de que alguma coisa tinha que mudar, mas no meu bolso um celular. Encerrei o contrato do lugar onde morava, encerrei meus expedientes para sempre, não avisei amigos, não deixei recado. Fui inspirado na idéia do Rei. Gostei, e fiz. A diferença é que ele sabe que vai voltar, eu ainda não sei. Vim impulsionado por essa idéia:
não sei.
Nem sabia o nome do lugar para onde ir. Escolhi a cidade de nome mais esquisito e comprei o ticket. Simples assim.
Não faço idéia de como continuar com esse plano. Mas, por enquanto, não ter plano é melhor do que qualquer um que eu já tenha tido até hoje. É como...
não sei. Não sei como comparar. Não sei dizer se está sendo bom. Não estou rindo, não estou triste. To indo...
Fui capaz de deixar tudo pra trás, mas a agenda do meu celular... ah! Não consegui apagar. Estavam ali os nomes das pessoas que fizeram parte de algum espaço de tempo realmente importante para mim. Não os tenho como uma possibilidade de volta, ou de se algo der errado. É só uma conexão com o passado que não é fácil de dizer Tchau.
Ao passo que eu colocava minha mala dentro desse... dessa Lata de Rodas, todo um peso era de fato transferido para um clichê e antigo Eu. Isto aqui, que agora toma voz, que agora tenta falar, que agora tenta aprender, sozinho, a andar sozinho... não é nada conveniente; nem para a sociedade moderna nem para o mim antigo.

O ônibus partia, e o sol das 4 que batia adentro encomodava alguns. Fechavam as cortinas precárias de suas poltronas precárias. Mas tudo muito conciso com suas aparências. Deixei a minha aberta. O terminal enferrujado e antigo saía de cena, assim como todos aqueles prédios e cartões postais - que levei comigo na mochila. Desliguei a música, o adeus merecia minutos de silêncio, de poucos pensamentos. Só uma estrada sendo pisada, este barulho e os barulhos das pessoas dentro do mesmo barco. Pacotes de salgadinhos se abrindo, uma criança rindo, um casal conversando.
- Quer? - me perguntou o senhor que estava do meu lado. A sua garrafa d'água não me foi atraente. Mas o seu sorriso e disponibilidade me desarmaram.
- Claro! - tomei um gole rápido e devolvi. Obrigado, disse depois.
- Saindo da cidade?
- Fugindo da loucura.
- Também num gosto. Nunca gostei, sabe? Venho porque meu filho mora por aqui, venho visitar ele mais a esposa. Mas é muito barulho, muita algazarra, muita cara amarraaada, se é!
- É verdade! - e ri. O senhor vai para o Terminal de Saudades também?
- Não, não. Não gosto de cidade, gosto duma calma. Saudades é boa, mas prefiro o meu canto.
- Tá certo. - me sentia culpado por não saber o que dizer.
- Quer mais água? - me perguntou, depois de um grande gole.
- Não, não. Obrigado!
Ele me sorriu com dentes faltando. Incrivelmente ele tinha mais energia sobrando do que os Sorrisos Colgate do escritório. Virou para o lado, virei para o meu. Quando percebí a cidade ja tinha tomado o seu rumo de despedida, e eu mal havia reparado. A vontade de agradecer àquele do meu lado tornou-se muito maior do que quando recusei a água. Indiscutivelmente maior.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Entre-linas, parte 5

Molhado até os ossos.
Estou molhado até os ossos com vossa ironia, minha vida.
A parada é solicitada dez, quinze vezes ao dia, e o mundo não para; nem gira.

Nessas de Biografia

Prefiro deixar no suspense.
Melhor do que dizer que sim e acabar que não, ou dizer que não e acabar pelo sim. Meu plano não suportaria ser desmanchado.
Ainda bem que sou indeciso,
ando nessa de morrer ou me matar desde que nasci. Como não sei decidir, fico nessas de pensar num futuro. Como alguém que, sabe, passa por tí pela rua. A diferença é que eu passo por mim várias vezes, e várias vezes, e várias vezes. Só passo por mim que, quando dou por mim, já passei do ponto.
Não sei em que parte da minha vida eu acabei parando nisso:
sentado, esperando um trabalho que não vem, vestido para o inverno em pleno calor de janeiro. Deus inventou o condicionador de ar.
O Diabo deve ter inventado o condicionador do amar.
Por isso que fico nessas de futuro. O futuro nunca vem, e o presente é de grego.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Entre-linhas, parte 4

O chão de ladrinho me basta para o calor.
E com os bolsos cheios espero o verão passar.
As mãos nos bolsos,
e com tudo nas mãos.

Deitar no ladrilho me basta para o calor.
Me deixa com frio em pleno verão.
Lamber o pote do iougurte me basta para o desejo,
como quem não tem o pote inteiro.

O ladrilho é gelado, mesmo com tanto calor.
meu corpo é frio, mesmo que estejamos no verão.
Dar passo por passo cansa que cansa,
mas dar passo por passo não tropeça, nem te deixa boas lembranças.

domingo, 16 de novembro de 2008

Biografia -ia

Mas se preocupar não é agir,
é como dizer:
"estou vivendo isso aí", deixando de lado a responsabilidade da luta.
A responsabilidade do concreto.
É ficar sem teto,
tatear o chão e fingir que pó e resto de construção ainda cobre a compostura desgastada pelo tempo.

Não estou nem aí, nem aqui;
tô do lado de cá, tentando descobrir o que é o lado de lá; tentando nem me arranhar.
E tanto tentei não arranhar...
tanto que tentei que nem tentei.


Já estava chegando o ponto de casa, enfim. Pena que percebi, ao descer, que o guarda-chuva teria ficado no chão do ônibus.
- Merda.
Por alguns minutos resolvi esperar embaixo do ponto pela chuva passar; tudo passa. O detalhe é que não sabe-se quando, como qualquer outra coisa no mundo. Ao final do décimo quinto minuto exclamei um
- Foda-se!
e segui o rumo até casa. Calmamente, aliás. Poderia ser um sinal, alguma coisa me dizendo para esfriar a cabeça, não sei.
Incrivelmente, esfriou.
Não sei em que parte da vida começa alguma história de amor de verdade, mas sei que nesses filmes americanos o engate perfeito teria sido esse:
passava por mim uma mulher linda, daquelas que a gente nem repararia se estivesse em uma situação normal. Nesta parte eu ofereceria-lhe o guarda-chuva, ela sorriria de volta e negaria. Eu insistiria, como que não me importando em pegar uma chuvinha e, junto, seu telefone. Ela riria, ainda debaixo de chuva, mas não se importando, afinal, ela estaria pensando
"que cara estranho!"
e eu estaria pensando
"ela não está indo embora... legal..."
e sorriria
então eu insistiria. Pegaria na sua mão, colocaria sua mão no guarda-chuva, enfim... cobriria-lhe obrigatoriamente. Ela acharia engraçado, e perguntaria meu nome. Eu não lhe diria, muito menos que me chamam de Canastra. Eu pensaria por 5 segundos na possibilidade de lhe dizer o nome verdadeiro; eu não estava nem um pouco vestido como Canastra, nem pretendia.
- Não vou lhe dizer meu nome.
Ela estranharia, pensaria que sou um...
- Não vou dizer, mas amanhã, na mesma hora das 10, porém com Sol, sabe a padaria que fica daqui a três quadras?
Ela me responderia que sim, estranhando.
- Estarei com um café para nos aquecer do frio de hoje. - tentando uma voz um pouco mais poética nessa alma porca.
Ela não entenderia, eu seguiria em frente. Ela assistiria por 15 segundos a minha ida, a minha não olhada para trás. Eu chegaria em casa tão enxarcado quanto cheguei agora em casa.
Mas eu não tinha o guarda-chuva, e agora nem tenho esse amanhã.

domingo, 9 de novembro de 2008

Biografia do mantra.

- A vida é bela, a vida é bela! - me dizia Seu Pedro.
- É, é isso aí - forcei o meu astral borocochô a um sorriso. Nunca se sabe.
Peguei a sacolinha da manhã e fui-me à casa.
"A vida é bela", ficou na minha cabeça enquanto o banho quente de pelar brincava de queimar. Fico imaginando se seria um fato ou algum mantra irresponsável e desesperado. "A vida é bela", me diziam sempre. Sempre, depois, forçava algum sorriso brochante na expectativa de tentar confortar o próximo que, em algum ato egoísta e desnecessário para o dia "X", ainda me retribuía com um olhar calmo, generoso, quase como me dizendo: "Qualquer coisa estou aí".
Que coisa é essa de fingir? "A vida é bela". Que coisa é essa de se negar a realidade? "A vida é bela". Que coisa é essa de... "A vida...".
Minha pressão já estava nos pés. Saí e segui a rotina como ela deveria ter que ser.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Biografia da gota.

A garoa está tão fina que mais parece névoa grossa. De singelo barulho;
barulho quase sagrado, estancado pela música que resolví impor em meus pensamentos nada respeitosos. Estou cansado, graças a Deus; cansado tanto na alma quanto no corpo de 13 horas pós-bico para sobreviver - me valeram um sustento tão temporário quanto o emprego pós-demissão.
O que a mulher dizia no pé do ouvido rasgava tudo que poderia estar inteiro, fazia e abria minha boca, gesticulando as palavras que, por muito pouco, não estavam cantando.
A garoa ia caindo cada vez mais rápida, e eu, num antigo ponto de ônibus - daqueles da época em que eram de concreto e de cheiro de mijo - só assistia o processo. E de garoa em garoa, veio a chuva.
Fazia tempo. Fazia tempo que eu não prestava atenção em algo puro e verdadeiro como isso. É raro algo como isso; isto: de realmente perceber algo como isso.
Tão raro que agradeci quando o ônibus se mostrou na curva. Tão puro que eu não me sentiria confortável com aquilo por muito tempo.

O ônibus também era dos antigos. Chão metálico, barulhento, cheio dos tilintares e crec crec's. Dos quarenta e tantos lugares disponíveis, uns 6 estavam ocupados.
Homem negro, homem branco, mulher parda e criança parda faziam a frente, espalhados, na parte da frente. Lá atrás: ocupado por um casal esfrega-esfrega-risadinha.
Sentei entre o homem negro e o homem branco, à esquerda da mulher parda e bem longe da criança. A chuva não estava a distraindo como deveria. "Deveria?", pensei. E deixei de raciocinar e apenas acompanhar as gotas que se deixavam escorregar pela janela aberta em frestas.
- Deixa a máquina respirar. - foi o que a mulher parda me disse quando tentei fechá-la completamente, logo quando sentei.
- Ok. - foi o que consegui responder. E deixei assim mesmo.

O sono já estava me pegando forte. Teria uma pequena viagem do bico à casa. Não sabia que a cidade era realmente tão grande. Minha cabeça, desconfortável naquele bate-bate de cabeça-janela, ainda assim preferia o cochilo. O barulho de metal batendo, de chuva batendo na máquina, da máquina combustando e andando, fazendo curvas, e...
foi me levando e, quando dei por mim, preferia a vida.

domingo, 26 de outubro de 2008

Biografia do conselho

Nada é questão de merecer, tudo é questão de analisar
a opção certa,
a pessoa certa,
a coisa certa a se fazer. A ser feita enquanto há tempo.
Há tempo, então analiso para poder chegar a um caminho prático, fácil, simples. Sem entre linhas.
Sem subjetividade.
Minha avó já dizia:
"Conselho de mãe é conselho vidente". Resolví seguir.
Hoje tenho a vida montada e estruturada. Trabalho em uma ótima empresa, ganho um bom salário, moro em uma grande cidade, tenho dias bons. Domingos para descanso e organizar o resto dos dias, dos papéis, das comidas, da cama pouco usada.
Combato o Vazio com um Vazio bem assado às Sextas-Feiras. Lei.
Não bebo e não fumo, pretendo viver bastante. Pretendo ter carreira de sucesso. Pretendo ter uma casa distante da cidade grande. Pretendo ter família bem constituída. Pretendo que eles tenham vida mansa, assim como tinha na antiga cidade que morava. Pretendo, quando tiver a minha realização profissional, largar tudo e viver calmamente.

Minha mãe morreu quando nascí. Mal pode me dar nome. Disse a minha avó que queria escolher o nome quando olhasse no meu rosto. Não pode, então meu pai que escolheu.
Adamir.
Ele me explicou que Adamir significa "Pai ilustre". Nunca entendí, quando 8 anos, o porquê de raios alguém dar um nome desses para um filho.
Com 10 ele desapareceu, deixando uma carta. Então entendí.

Essa história me deixa nostálgico. Nostálgico em relação a imaginar como poderia ter sido.
Nada como a vida prática de uma Quarta-Feira...

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Biografia do pouco.

Eu posso ser poço,
posso ser poça.
Sou metade.
Metade de tudo aquilo que tenho coragem de.

De tudo aquilo que tenho vontade em conhecer sobre o que é um alguém.
De quem não tem medo de perder,
também por várias vezes irá medir o tempo da eternidade
de quem não tem nem Se.


Eu sentia que estava prestes a ser despedido do trabalho. Ia, mas não resolvía. Não adiantava ter alguém sem... sabe, utilidade. Fazia tempos que tinha voltado a minha velha forma e nem sei como ainda estou por aqui.
Faz tempo?
Perdí a noção de tempo.
Mas parece que faz tempo sim. Nem sei. Isso aqui tá me matando. A minha casa também pode ser mortal, no seu nível. A rua pode ser mortal, no seu nível. A minha vida é mortal, indefinivel.
Graças a Deus que meu corpo tem algum tipo de subconsciente, que trabalha por mim sem o mim trabalhar verdadeiramente. O meu corpo vai e eu vou atrás.
O meu corpo está digitando a carta de demissão. E mim não está nem um pouco contrário.
Enfim poderei sofrer de férias e ressacas sem preocupações.
E só não mando todos tomarem no cú por simplesmente ainda acreditar em boas relações para o futuro. Sim, porque, acreditem ou não, eu ainda acredito no futuro. Só, por favor, apaguem a luz por enquanto, e saiam de mansinho. Por enquanto preciso ter uma dose de... tudo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Bioconversada.

- Pode parar! - mandou o pedinte.
Parei, olhei. Continuei olhando.
- Pode parar! - exigiu o pedinte.
Continuei parado, daí resolví dizer alguma coisa.
- Alguma coisa aconteceu? - foi o que me sobrou.
- Não.
- Não? - e já me perguntava o quão absurda a cena parecia aos outros.
- Exatamente.
- Exatamente como?
- Não aconteceu nada. Quer dizer, você parou quando eu pedí. E pronto.
- Ah.
- É.
O pedinte continuou sentado no parapeito da janela térrea daquele prédiozinho velho de esquina.
Eu continuei esperando algum insite cerebral.
- E agora?
- Agora o quê? - perguntei.
- Parou, e agora?
- Não sei, oras!
- Parou se eu pedí.
- Não, não. Você berrou!
- Sim, tá. E agora?
- Agora vou continuar andando, oras.
- Vai para casa?
- Vou.
- Comer?
- Ahãm.
- Tomar um banho, colocar o pijama.
- É, por aí sim. - não gosto de usar pijama.
- Ah, então tá.
- Então, é isso?
- É, isso.
- Então tá. - e continuei andando, oras.
"Vai entender!", pensou.
- Tá. - continuou no parapeito surrado, de roupas surradas.
Talvez um dia entendesse.
E a noite percebeu seu papel.

sábado, 18 de outubro de 2008

Biografia rápida de um instante.

Chamam de Sociedade um conjunto de número incerto de Pessoas.
Eu chamo de Hipocrisia.
Eterna Hipocrisia Desmedida é seu nome científico, para ser mais exato. Nesse mundinho eles acham que emitir sons é emitir idéias. Pobres...
um mundo em que o silêncio é generoso quando acontece.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

PhotonGrafia, parte 1.


Biografia na rua.

Todos passam.
Seus rostos
sem medo, sem ternura, sem coragem
nem maquiagem.
Passam, não deixam rastros. A má vontade,
ou a boa vontade,
apenas não passam de falta de vontade. De falta de descanço.

Cansa.

Estão cansados, seus olhos quase fechados.
Seus passos: cansados.
Todos passam.
A vida passa.
É a vida.
Todos passam,
sem vida. Exaustos,
estão cansados do dia,
estão cansados da vida,
estão sorrindo. Estão exaustos,
e o dia, enfim, termina.
Os sorrisos são tristes, estão tristes.
Ou apenas cansados, e cansados seguem ao lar.
Lar do canto do amor sem dor, sem pranto, do canto insassiado.
- A comida está sem sal.
Até a cerveja gelada lhe faz mal. Que mal?
É o tal.
Mas todos ainda passam, não param de passar
até que eu mesmo não pare de passar
pelos passantes da rua da qual o horizonte não me parece tão distante. É de pedra suada.
Da rua da qual a normalidade é séria
e os risonhos são loucos!
Mas a normalidade está doente,
cansada.
Os insanos são normais que apenas deixaram a desejar e desejaram. Desejaram. Agora
apenas sorriem para afastar os maus agouros
da vida.
Os normais: insanos.
Ou apenas estão cansados.

Parei.
Eles pararam de passar.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Biografia da Bunda Mole

A bunda daquela negra tentava ser artefato de desejo caro. Pena que bunda mole nunca ganhou nada que centavos doados. Pena que estava com pena de mim mesmo. Uma pena.
E isso me lembrava daqueles milhares de penas de pequenas águias à beira-mar de um oceano que fui visitar no último verão. O oceano estava pacífico. Fazia das ondas um acaso raro, sem raiva nem vontade alguma de se fazer sentir algo. Só sabia que era mar pois o nome do lugar levava Praia no começo; se não, por mim, para mim era lagoa mansa.
Mansa como o ar - que me nego a chamar de vento, ou brisa, de tão mansa. Mansa como minh'álma, cansada o bastante para esquecer de reparar na realidade do dia-a-dia. Por isso tinha vindo visitar o mar. Para relaxar.

E a bunda continuava na vitrine; rebolando, dançando. Mole.
Era uma casa no meio de ruas que poucos se atreviam a visitar, mas que ainda assim possuía seu estilo. Ao contrário da bunda era muito elegante. Ao contrário da bunda: era...
firme. Tinha anos e anos, mas firme. Era, a casa, famosa na cidade. A bunda não. A bunda era nova.
E não me restou nada mais a fazer do que aceitar o acordo monetário. Os Drinks me ajudariam a fantasiar o que eu quisesse. Por mais que me parecesse mais barato pagar a mais cara e não gastar com a casa, ao invés de gastar com a casa e gastar na barata e novata.
E era isso o que me restava. Mas isso era o que me sobrava.
A bunda mole.

Admentindo Biografia

Preciso de uma fagulha.
De um antro.
Desculpas,
preciso de desculpas.
Mentiras, admito.

Sem isso ou aquilo,
sem desperdício.
Admito,
admito: minto.

Precisa-se de vendedor, diz a placa.
Eu preciso de um comprador dos anos
das dores,
dos antros,
de tantos mantos perdidos.
Mas eu minto,
acreditas?

Eu minto descaradamente.
Admito!
Nem cara descaro. Nem cara tenho.
Nem o peixe alimento,
quer que eu alimente tua alma!
Que gana,
que força. Que coisa!

A máquina, a máquina, a máquina, a máquina,
eu.Sem descanso,
sem descaso, descalço.
Nú, na vergonha, sem delongas e entendendo xongas!
Nem ente querido,
nem pente perdido.Procuro o quê?
- Acho quê. - Achas tanto!

No tapete, puxa!
Admito:minto.

Puxa!

Puxa, que isso?

Puxa. Desisto.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Biografia típica

- Ei!
Quando olhei, mal reparei, meu rosto já sentia-se dolorido. Seu soco era pesado, e o chão estava molhado.
- Foi você?
Eu entendia, mas tudo estava sendo rápido demais. Meus músculos não acompanhavam as minhas idéias, então logo a mesma mão veio me puxar do colarinho.
- Foi você?
O barulho, as pessoas. A bebida estava forte. O efeito estava forte, e o soco fora, de fato, forte.
- Não vou perguntar de novo. Outro soco, agora no estômago, quase me fez vomitar as bebidas caras que meu bolso ainda sentia falta.
Conseguindo recobrar a consciência, me disvencilhei.

.

O dia estava horrível.
O dia estava morno, minhas costas estavam suadas, meus olhos estavam irritados.
O dia estava realmente uma merda.

Chego em casa, finalmente. Tinham acabado com a cerveja, tinham acabado com o beck e o conhaque barato estava no fim. Era o fim!
- Puta que me pariu, viu? - eram as únicas coisas que insistiam em sair da minha boca toda vez que olhava para aquela geladeira vazia.
O banho gelado só piorou.
Eu precisava de algo forte. As idéias não vinham.
O barulho do lápis batucando no vazio. Da geladeira. Dos passos lá fora.
Eu precisava de algo forte.
Saí.

Mas peguei minha jaqueta surrada, talvez esfriasse.

.

A porta estava aberta, como sempre.
Nada me impediria. Nem a porta, nem a falta de grana. Nada. Era esse o recado:
Nada me impediria.

E quando percebi...
ela pulava no meu colo como uma lebre fugindo de dentes que saberia muito bem: a comeria de um modo que ela não gostaria. Ela não gosta nem agora, mas sabe que poderia ser pior. Sabe que estou sendo bonzinho.
Sendo que nem eu mesmo sei aonde estou.
Que nem sei mesmo quem sou.
Aonde estou.
Ou onde estou. Nunca fui bom em gramática.
Mas as professoras sempre gostavam de mim. Os professores não.
Ela sabia que poderia ser pior, por isso continuava pulando. E as únicas coisas que eu conseguia dizer eram: "continua, continua".
A música não demoraria muito para acabar.
A porra da música tinha horário marcado. E namorado.

Passei pelo corno na saída do prédio. Engraçado.
"O que ele faria se soubesse?".

.

Voltei para meu caderninho.
As cervejas não reaparecem, muito menos o beck. Me apreoveitei do conhaque.
O caderno surrado me entendia, sabia que eu teria de abandoná-lo aquela noite.

Saí.

.

Me disvencilhei e corri.
E rí. Resolví voltar a honrar o apelido Canastra de ser.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Biografia do baque

Às vezes, como agora, me bate uma saudade. Aquela agonia escondida em um lugar que ninguém sabe onde é, só que perto do coração o é. Acontece que teimam que o que dói é o coração, mas como vão saber?
Essa nova cidade é interessante. Mas quente, extremamente quente. Meu apartamento, que até é bem localizado e ventilado, fica insuportável a noite. E os mosquitos? Enche!
É muita rua, muita gente - que devem estar em algum outro lugar agora. É verão. Para muitos férias, mas para mim não.
É muita fumaça, e provavelmente muitos carros - não tenho como saber, estão na praia junto com seus donos, ou estacionados, esperando.
Muitos prédios grandes, muita luz quando não deveria ter. Muito barulho quando não deveria ter. É grande.
E tem muita gente. Muita gente diferente, que eu nunca ví, que eu nunca seria como.
E aí bate aquela saudade daquela cidade que era cidade, mas também casa. Sem quantidade variante dependente da estação. Não era pequena, não sinto diferença nisso. Só era mais... conhecida. A cidade, grande, cidade grande esta, não passa de escritório-quarto-padaria e supermercado nos finais de semana. E uma praça grande demenos para um chafariz grande demais.
E aí dá aquele aperto. Mesmo quando penso que não teria porque continuar na antiga cidade pequeninamente grande. Mesmo sabendo que saudades de hábitos não existentes não são saudades, mas falta daquilo que eu nunca tive, ou soube ter.

Não sabia que seria assim.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Biografia da Carta

Agora é a hora de tentar inovar,
mas inovo tanto, tantos dias,
que me deixo tonto por tanto tentar enganar o que nunca,
nada vai mudar: alguém que quer ser o que é, nenhum remédio vai curar.
Alguém que é o que é, parece até fantasia;
e pena que o é. Mas agora é hora de tentar inovar,
numa hora em que nem me acostumei com o novo que criei. Vai entender. Vai, entende;

E era tudo.
Só soube de quem pelo remetente. Nem disse onde está. Nem quão bem. Por mais que não parecesse realmente bem.
Nem sei mais que horas são, esperava ficar horas lendo e relendo a carta que eu esperava que fosse imensa; de tantas e tantas páginas, como cartas de pessoas que estão longe. Foi tão curta que reli umas cinco vezes em menos de seis minutos, provavelmente.

Levantou-se da cama, espriguiçou-se. Pegou a carta, dobrou em duas, quatro vezes menor o seu tamanho; colocou-a no bolso de trás de um jeans suspeito. Foi á cozinha e cozinhou sua comida de solteiro - da qual nem comento, pois não quero tirar a fome de ninguém,
pois não era bom cozinheiro. Maestro fazia falta.
Já estava ficando tarde, provavelmente.
Já nem sabia quão rápido o tempo poderia passar.

domingo, 28 de setembro de 2008

Biografia, de novo.

- Opa!
- E aí!
- Me vê três pães.
- Ok mestre.
Virou, pegou os três pães, ensacou-os com suas mãos de luvas transparentes, pesou-os e pronto.
- Pronto!
- Valeu!
Digiriu-se ao caixa, após especular preços da duas únicas prateleiras da tal padaria. Ele gostava dessa padaria. Era mais uma dessas de esquina, mas tinha um clima que não saberia explicar. É como quando você sente algo que... sabe, não sabe explicar. E ele sentia isso pela tal padaria.
- Fala rapaz!
- Bom-dia, Seu Pedro. - Seu Pedro era dono a pouquíssimo tempo da tal padaria. O povo fala que, depois de um tal acidente, a aproximadamente uns bons três meses, o tal ex-dono dessa tal padaria teria acabado por vender a tal. Padaria esta que, agora, era de Seu Pedro.
- Vai ser só?
- É. Fim de mês, sabe como é.
- Tá certo, tá certo! Bom dia, rapaz!
- Valeu Seu Pedro, até!
E saiu.

Acho que por essa história toda que acabei gostando da padaria. Era engraçada. Ficava ao fim de uma estranha rua de paralelepípedos, estreita. Coisa que não se vê mais em cidades tão grandes quanto essa que eu vivo. Mas a rua, essa tal, desemboca numa praça bem... relaxante. Pena que hoje os pães estão quentes, tenho pena de deixá-los esfriar enquanto passeio.

Seguiu em passos firmes para casa. Eram quase sete horas da manhã, e o longo, longo dia estava apenas começando.

Cidade nova, vida nova. É o que dizem. Rotina é algo mortal no sistema.
Mas é sempre bom conhecer algo novo. Ou alguém novo. Tipo desses que se for embora não vai doer por dias, mas que se ficar vai ser bom.
É bom.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Biografando transformação.

Tem gente que se vai,
e aí que a gente se vê.
Se já não era nada antes, imagina sem quem sabe ao menos seu nome,
o que você bebe, qual a foto do teu RG.
Aí que a gente se vê.
Aí que o rabo intorta a porca,
não tem nada mais insuportável que conviver consigo mesmo sem nada mais pra ver.

Aí que a gente nota o quanto importa ter alguém,
mesmo sem se dar bem,
ao seu lado, nem que seja para assistir Tv.


Dizia na carta muito, tanto que tive que me obrigar a parar de ler e subir para casa. Foi uma viagem longa de elevador.
Então cheguei, sentei, e lí.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Biografia do azedo.

Me atiro pela janela do térreo pensando na torta de limão do amanhã.
Vai entender...

É complicado, agora tenho de contar os acontecimentos meus. É realmente complicado contar sobre o que não aconteceu, ou sobre o que deveria acontecer.
Acordei cedo, trabalhei, almocei cedo, trabalhei. Voltei pra casa sem passar no boteco, nem na casa de ninguém. Sempre reclamei do Rei e do Maestro, mas nunca tive a capacidade de procurar novas companhias. Acabei me acostumando, e de tanto me acostumar: acabei achando que era mais que puro coleguismo coletivo. Não sei até que ponto pode-se chamar aquilo de colegas de trabalho. Não sei quando podemos aceitar que era amizade, já que nenhum dos três, de fato, sentia-se como amigo um do outro.
Eles, nas aventuras deles, nem devem estar sentindo saudade daquilo que insistia-mos em chamar de vida coletiva. Foram anos de trabalho, juntos.
Acho que estou prestes a pensar em aonde eles podem estar. Eu estou em casa, um lugar novo para mim. Em que novo lugar eles podem estar é a pergunta que matuta na minha infame cabecinha de merda.
Preferia quando eu contava sobre o que eles me contavam. Da minha vida vocês não vão gostar.
Eu não gosto. Mas matenho. Gosto de manter, mesmo que não pareça. Mantenho sempre o satisfatório, para não ter que gerar nada ilusório e acima da linha de simples condição humana.
É como pular de bung-jump. O quão mais perto do chão você chegar; mais para o alto, puxado será. E satisfatório é bom. Nem péssimo, nem ótimo. Ás vezes bom, às vezes ruim. Mas nada fora do controle.

Quem deu o apelido de Rei do Ócio, para o Rei, fui eu. Engraçado. Só porque ele conseguia ser mais controlado que eu, não quer dizer que eu seja descontrolado, ou desapegado. Estou começando a achar que eu sou o mais quadrado, e para um quadrado, onde existem apenas 4 lados, é fisicamente impossível que as coisas apenas rolem.
Aqui, cansado, acabei percebendo que sou como aqueles dois. Talvez por isso briguemos e nos indentificamos tanto. E negamos tanto.


...


O mês estava começando. E Canastra, na sua pressa do chegar em casa e desamarrar os sapatos, acabou por se esquecer de pegar suas contas. Era bem provável que também não quisesse. Mas, como que descendo para a guerra, desceu do seu sexto andar, de pantufas e uma roupa um tanto duvidosa para as ruas, e dirigiu-se mecanicamente para a caixa de correios.
Pegou suas chaves, abriu com pouca dificuldade. Pegou aqueles tantos papéizinhos, papelotes, papéis e pacotes. E cartão postal de um. E carta de outro.
E o sorriso se fez, inevitável.

domingo, 21 de setembro de 2008

Entre-linhas 3

Antes nada do que algo que não te agrade,
mas tudo bem. Tá tudo normal.
Nada mau para alguém que nem tem o que dizer sobre tal e tal.
Tais estes que mal e mal tem o livre como algo além de vital.

Peço nada mais que um farol apagado,
escondido na neblina do frio formado pela distância com a qual a terra estaria.
Nem quero cavalaria ou salvação,
me serve a redenção.
Me serviria um não. Serviria um não,
mas não tente não entender.
Quando peço nada,
peço nada além do rumo de como as invariáveis são.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Biografia do lapso.

Posso rir?
Pode?
Não, to falando sério... me deixa rir! Preciso!
Ou mijar, rápido. Antes que...
ops. Mas foi só uma gota, juro.
...
eu me imagino rindo, e me parece tão bom. Deixa eu rir ao vivo. Em mim não vai doer. Em tí vai. Mas, vai... só um pouquinho. Bem pouquinho.
Não?
Tá, só uma gargalhada. Só uma!
É, também não. Imaginei.
Aiai... teria sido bom. Passou. Feliz agora?
Não, não. Não adianta me dizer que pode agora. Agora não consigo mais. Agora não consigo.
Agora aguenta.
Ah! Está se sentindo mal? Pena. Eu to normal. Perdeu a graça.
Tchau.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Breve pausa para a Biografia da Inocência.

Olha! - me disse a criança, apontando para o sol.
- Mas o quê?
- Só olha.
Olhei.
- Não vejo nada.Aliás... só fez meus olhos doerem! Você sabia que pode ficar cega?
A criança ficou quieta, com o choro trancado na garganta. Com o choro orgulhosamente trancado na garganta. Os olhos brilhavam das lágrimas. A boca: retorcida. Respirava fundo.
- Vai chorar? Cansei de ser babá. Já tâmo nessa porra de parquinho tempo demais, o sol já tá fazendo mal pra sua cabeça. Vamos subir, cata teus cacaréco.
A criança, ainda quieta, juntou cuidadosamente suas filhas, os maridos de suas filhas, a família de suas filhas e o carro de uma de suas filhas - uma das duas filhas gostava de bicicletas apenas, para não poluir. Catou então a bicicleta da outra filha. Colocou tudo e todos cuidadosamente na sua mochila rosa, e vestiu a mochila rosa. Velha, surrada, suja e rasgada, como da primeira vez que a tinha visto.
- Demorou, hein? - eu já estava sem paciência. Os clientes essa semana estavam impossíveis, o supermercado caro, a gasolina cara, o cinema: caro. Assim como as pipocas, as locadoras, a internet, o telefone. Não podia mais sair para curtir com os amigos, minha mulher estava no pico de algo que nem sei o que é. Decidi visitar mãe e irmã, e agora brigava com a pequena também.
Peguei-a pela mão e ignorei suas pequenas pernas, eu precisava urgente de algo para a cabeça. Ela doía. O sol, afinal, não tinha feito bem era para mim.
Subimos as escadas, entramos no apartamento cuidadosamente arrumado, e a pequena foi direto para o quarto. Sentei-me na primeira cadeira que havia perto, minha garganta havia se transformado em dor apenas, assim como minha cabeça. Tudo o que pude fazer foi encostar meu corpo no sofá de três lugares. Tudo.

Entrou no quarto, fechou a porta com o mesmo cuidado com que arrumara suas coisas minutos atrás. Espalhou sua pequena família feliz em seus devidos postos: Mãe na cozinha, pai no trabalho, filhos na escola que havia montado com muita criatividade. Estava sozinha no quarto. O choro começou a escorrer pelos seus olhos, assim como as palavras:
- Mas é bonito... o sol é bonito.
Segurou seu braço dolorido com carinho e pôs-se a chorar.

sábado, 13 de setembro de 2008

Biografia do ser humano

Ser humano é complicado;
trás muita implicação, dá muito trabalho.
Esquecem que Humano é espécie,
e não uma espécie de igualdade para a Bondade.
Esquecem que hipocrisia e compaixão andam agarradas, de mãos dadas!
A hipocrisia dizendo que tá tudo bem,
a hipocrisia dizendo: "tá tudo fine, meu bem".
Pois bem! A compaixão também!

O Ser Humano tá instigado a ser demasiado,
mais que palavriado, muito mais que o além do certo e errado.
Esquece que é bicho, e não só gente.
O Ser Humano tá destinado a um destino insolente,
e isso não me surpreende!

Um dia a gente aprende, um dia a gente, quem sabe, venha a aprender. Nem sei. As ruas à noite são diferentes, mas melhores. Piores, quem sabe; mas melhores para mim. Gosto do piso e asfalto molhado da humidade do frio. Gosto de estar bem agasalhado, com o frio condensando o ar expirado pelo nariz e pela boca de alguém como eu. Daquela meia luz, que ninguém mal se entende; e das surpresas nos rostos que às vezes penso ser femininos, ou bonitos. Gosto de andar. Gosto das putas baratas quando to sem dinheiro, e das caras quando quero mentir nomes para mim mesmo. Eu gosto do meu jeito à noite. De dia sou sacal, cheio das responsabilidades enfiadas.
Mas à noite não. À noite sou espião de mim mesmo em busca daquelas coisas que todos buscam, mas que buscam em lugares errados. Eu sou sincero comigo mesmo, por isso sou certeiro. Nunca saiu pela culatra, e por isso nunca entendi o Rei e o Maestro. Desesperados, pobres. Se para mim não dá certo, parto para a próxima sem drama. Eles não, ficam nessa cheia de blás sem parar. Confesso que estava um pouco cansado, já estavam sugando a minha energia mais do que eu mesmo tinha. Estar em casa nunca foi realmente tão divertido quanto voltar para ela. Gosto da rua à noite; tem pouco, mas tem movimento. Um movimento por vezes sinistro, com injeções de adrenalina por vez ou outra. Por isso gosto, também. A casa está sempre parada e vazia, e só tem algo para comer quando trago da rua. Da rua à noite ou de dia, tanto faz; é basicamente tudo comida.
Gosto da noite, e graças a Deus ainda nem duas da manhã são.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Biografia de quem não tem nada a perder.

Ser vencedor e ser perdedor é uma relação muito complicada quando não se está, de fato, em uma competição.
Ser ou ser, eis a questão!
Troféu a gente bruica, fabrica na mão. Mas ah!
A satisfação, me desculpem,
mas não!
E tudo o que me resta é estar aqui, nessa merda dessa cidade que só sabe chover. Enquanto isso um amigo pirou, e fugiu. O outro amou a idéia e foi para qualquer outro canto. Não sei como conseguem, não sei como se deixam levar por tão pouco. A cidade sabe só chover, e eu sei aproveitar as donas desesperadas por um bom teto seco.
Quem canastra um dia é, nunca o deixa de ser. Não é?
Então, senhores e senhoras, dêem-me licença. Não aguento mais histórias melodramáticas, e blá blá blá. Vâmo vê um pouco mais de ação, que não essa falta de coragem daqueles dois. Já falei o bastante sobre eles. Agora o Rei e o Maestro se foram. Agora sobra eu aqui. Afinal, o que eu tinha para perder, partiu ao meio; e esqueceu de avisar.
Agora sou eu, essa puta chuva, e essas putas por aí.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Entre linhas, parte 2.

É história
aquela velha história
de que quem não tem o que quer ter
tem menos que quem tem sem querer.

Me preocupa esse teu sempre querer.
Pois para que me preocupar em ser
se só o que tenho
é o viver.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Biografia apagada.

Hoje eu faxinei a casa.
Troquei os lençóis, as fronhas. Mudei o colchão de lado.
Limpei o banheiro, troquei o desodorante do sanitário, lavei a pia, o chão.
Daí varri o chão do quarto. Passei pano húmido com tudo que pode desbacterizar o lugar a curto e longo prazo.
Arrumei o armário de roupas e a despensa da comida.
Concertei o que estava quebrado. Joguei fora o que estava inutilizado. Rearrumei o que estava desconcertado.
Então fui cozinhar o almoço;
depois lavei a louça.
Pus tudo, tudinho, no lugar. Minha casa, depois de tanto, está arrumada. Antes eu tava até desconcertado, tamanha a bagunça.
Agora ta tudo, na casa, arrumado. Talvez agora eu possa começar a pensar em fazer da rua um acaso. Quem sabe eu até possa rearrumar a bagunça da vizinhança, sem me preocupar em estar do mesmo lado.
Minha casa está, enfim, arrumada. Quem sabe, finalmente, minha grama fique como que milagrosamente mais verde que a grama do lado.
Ainda mantenho um cartinho da bagunça, para de vez em quando brincar de ser confuso e relaxado. Mas o quarto é pequeno e muito pouco usado. Deixei assim mesmo, dá um charme, um jingado.
Mas a casa, prometo, está em pé e saudável.

Com amor,
Rei.

Obs. Desculpe essa última carta, foi impensado. Quando eu voltar, vou correndo te avisar.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Sambiografia do medroso.

Preciso tanto te falar:
daqui a pouco o sol vai se levantar.
Preciso ir, me refugiar!

Não é certo, não é errado.
Só sei que preciso ir.
Não sei o quanto eu devo correr
para não deixar ninguém me alcançar.

Ninguém pode me alcançar,
não podem me fazer falar.
Só vou me calar,
e despistar toda a verdade que eu puder enxergar.

O dia vai raiar,
preciso tanto te falar que eu preciso ir.
Mas você não está aqui,
está lá:
do lado de lá.


Preciso tanto lhe falar,
mas contigo não posso estar.

Se esta mensagem você ler,
entenda-me!
Tive de ir,
para ninguém me encontrar.
Tive de fugir,
para ninguém me fazer falar.
Não posso falar ao mundo,
ainda,
o quanto amo você;
o quanto com você eu quero estar.


Ato II

Depois,
quando te encontrar,
não saberei o que fazer,
não saberei do que me desculpar.
Depois,
quando te olhar,
não saberei para aonde olhar,
nem saberei se em teus olhos eu vou ainda estar.
Depois,
quando te ouvir falar,
não saberei se a tua fala vai me agradar,
tampouco saberei se irás ter fala para algo contar.
Depois,
quando te encontrar,
não saberei se de novo vou fugir,
ou se só voltar, significa querer tentar.

Ato III

Mas sei que,
agora,
preciso tanto te falar:
preciso ir, me refugiar de ti.
Continue onde está,
sinta que este é seu lugar.
Enquanto isso:
eu vou estar por tudo o que lembrar.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Politicuzinhos.

Politicuzinhos,
filhinhos mimados de papais.
Politicuzinhos,
filhinhos da mamãe que nem vou comentar.

Palavras bonitas,
sorrisos brancos!
Politicuzinhos de merda!

Sabem falar,
sabem se vestir,
e sabem muito bem o que estão fazendo!
Politicuzinhos de merda!


Cães tão bravos quanto linguiças enlatados.
Vestem a carapuça,
não desmentem o maldito,
deixam para trás o que é dito,
assim como você:
sociedadizinha sem ida!


Deixem tudo como está,
esqueçam quem está,
mesclem o bem-vindo com o não dito!


Politicuzinhos de merda,
eu sei, a culpa não é sua.
Politicuzinhos de merda,
eu sei, a culpa não é sua.
Politicuzinhos de merda,
eu sei,
eu sei que a culpa não é sua.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Biografia do dedão.

Em meio ao nevoeiro de ar e vento preto da grande Grande Cidade-de-sempre, o mestre da falta de nervos, Maestro, correu pela irritante e estressante via única de uma mão. E que subia, para piorar.
Não tinha trânsito, não tinha quase ninguém. A chuva passara a muito, o verão chegara, a alegria permeava as outras cidades de praia. E ele lá.
Rei e Canastra, ambos estavam por lá também. Mas o cérebro de Maestro fervia pelas mesmas ruas, de sempre mesmos nomes, de pessoas de mesmos sempre nomes com carros sempre das mesmas cores e prédios sempre, sempre cinzas - que pareciam mais espinhos em uma terra cheia de dores.
Dividia um ap. com Canastra na esquina oposta à esquina de Rei, e nem eu sabia direito onde ficava. Nem os dois depois das noitadas, que sempre acabavam no prédio do amigo. Mas Maestro estava lúcido, e sentia seu dedão formigar tanto quanto suas idéias e sonhos juvenis. Após anos e anos em cárcere privado, e privado de sua vida que ninguém o privara, zuniu pelas escadas até seu quarto andar, de um total de sete.
O dedão coçava, e a lucidez mais certa após tocar no armário, e o abrir e por na sua mochila quase toda sua pouca vida.
Passou a mão na vida e colocou-a nas costas. Vinte e cinco anos, e ainda estava leve.
A sua chave deixou na caixinha de surpresas e de contas para pagar. Deixou, também, um pedido de desculpas para o colega de quarto e um pedido de qualquer coisa que lhe conveio na hora para o colega segundo.

Ao terminar de sonhar, caiu tanto na realidade quanto em uma estrada de saída da cidade Grande, grande ex-cidade de sempre. Levantou a cabeça, o braço e então a mão.
Na mão: levantou Isto, o dedão da mesma mão, e partiu então.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Biografia da noite-insônia

A noite teve a ousadia de estar tão escura quanto seus olhos. Seus olhos ousaram não descansar, estava concorrendo com a maldita hora.
E Rei estava terrivelmente transtornado com tal caso.

Olhos abertos, luzes apagadas, corpo suando de tensão e ansiedade. O sono não vinha, e seu nervosismo lhe fazia mais consciente. A chuva lá de fora, que deveria ajudar a acalmá-lo, mal fazia cócegas. Aliás, fazia-o pensar em coisas como:
-Será que essa chuva não vai parar?
Ou:
- Será que vai parar um dia?
Ou, ainda:
- O prédio vai destelhar! - lógico, isto deve ter sido lá pelas quatro da manhã, pois esqueceu-se que seu prédio, como tantos outros, ou quase todos, simplesmente não tinha telhas.

Os lençóis macios agradavam seus pés. Rei estava estressado, mas agradecia ao seu consumismo. Havia comprado todo o jogo de lençóis e etc's em uma ótima promoção, naquela loja que tanto anuncia preços bons. Ele nunca deu a mínima atenção para o que diziam, mas sabia que eles existiam. E isso já foi o bastante.
Um dia, passando em frente à loja, reparou o quão bonita era a atendente. Entrou.
Na loja.

Lembrava-se com um sorriso idiótico no rosto.
Entrou na loja, pediu ajuda para a moça. Disse que precisaria de roupas de cama - acentuando um tanto quanto inutilmente esta última palavra. A atendente, mais interessadamente possível, dirigiu-o a uma segunda atendente.

- Olá - eu disse.
- Em que posso ajudá-lo? - perguntou a atendente segunda.
Sua cara deixava na cara que era novata:
estava sorrindo. O que não ajudava.
Seu rosto era, de longe, bonito. No máximo charmoso.
- Senhor, em que posso ajudá-lo? - tirando o sorriso do rosto dela e quase colocando-o no meu.
- Ah, sim! - eu estava achando quase divertido - preciso de roupas de cama. -sendo o mais direto possível.
- Venha comigo, por favor.
Seu andar era bonito, para uma máquina.
Escolhi sem dar atenção e voltei para casa, agradecendo por poder dormir em lençóis novos, limpos, e sem cheiro ou sensação de humidade.

Não conseguia dormir de jeito nenhum.
Quem sabe era culpa do excesso de trabalho, quem sabe era culpa da mulher em que estava ao meu lado?
Logo descartei a segunda opção, a noite fora boa. Eu deveria estar descansando como um Rei agora.

Rei estava verdadeiramente cansado. A manhã, tarde, noite, o mês... quem sabe tudo aquilo. Fazia tempo.
E aquele muleque, nunca mais o vira no parque. Ouviu falar que tinha sofrido um acidente, quase morrido. Quem sabe era exageiro. Quem sabe, não.
Só sabe que o acidente assustou todo o bairro. Enojou o bairro.
Pelo o que ouvira falar, o cara disparou tão rápido que mal pegaram a placa.
Rei sentiu um arrepio, quem sabe até um mal estar.
Levantou-se e foi ao banheiro; lavou seu rosto, vestiu-se com sua samba canção e cantarolou qualquer coisa. Em breve a cidade também estaria acordando.
Foi aprontar seu café-da-manhã. O seu, e o dela.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Biografia da culpa.

- Olha, - eu falo - diz ou te calo.
Tomo um trago.
Eu ainda estava calmo.
- Traz a venda, está na dispensa.
Ordens são meu forte, sempre foram.
Dar ordens é uma Arte!
Tu ficas na descrença, já sentiste a minha presença.
- Põe.
Agora não vês.
Silêncio.
Chego próximo do teu rosto medroso e, agora, cego.
- Anda, explica, porra! - eu, aos gritos.
Gritar também é uma arte. Ou você sabe gritar, ou parece uma bicha medrosa.
E tem certas coisas que me embrulham o estômago, por isso sei gritar: para não sofrer com a possibilidade de sentir nojo de mim mesmo.
Eu ainda estava calmo.
Silêncio.
Tomo um trago.
Silêncio.
Trago.
Mas estava perdendo a paciência. Queria ir ver minha mulher, e rápido.
- Estou perdendo a paciência - disse para o coitado.
Ele não tinha culpa.
Tinha? Não sei. Eu tenho.
Eu tenho culpa.
Meu pai tem culpa.
Minha mãe não, sempre me pediu para estudar, ser um médico ou dentista talvez.
Meu pai me queria lutando pelo nosso país, então assim o fiz.
Lutei, e acabei aqui.

Minha mulher quer um filho e uma filha, mas já não garanto que quer de mim.
Não quero filhos para morrer pela paz - sendo que eles próprios não estão em paz.
Talvez seja por isso que eu lute. Talvez eu só queira que meus filhos não lutem. Talvez eu queira os filhos. Talvez eu queira que um seja dentista e a outra seja médica. Ou ao contrário, não sei.
Mas, antes, precisava da minha mulher.
Silêncio.
Talvez ele não tenha culpa.
Silêncio.
- Me tortura, mas não me culpa! - ele falou.
"Estranho", pensei.
- A dor não expia a culpa da tua consciência - eu disse.
Não sei porque, escapou.
Meus soldados não entenderam, o Padre presente não entendeu.
E o homem começou a chorar. Então arranquei-lhe as vendas.
Não tenho nada contra homens que choram, mas devem saber chorar. E ele sabia.
Seu rosto estava contraído, seus olhos raivosos.
Suas mãos cerradas.
- Eu... não... tenho... Culpa!
Me olhou com firmeza. Tinha bons olhos.
- Sumam com ele - ordenei. Nada entrará em sua ficha, seu nome será apagado. Nada sobrará, nem papéis, nem ossos.
Nem soldados, nem Padre entenderam.
Não foram feitos para entender.
Foram feitos para receberem ordens. E quem dava as ordens?
Silêncio.
Tomei outro trago.
Quem dava as ordens, hein?
Exato.
Silêncio.
O homem voltou a chorar, mas sem soltar um pio.
Estava aliviado.
E eu iria, então, ver minha mulher.
"Dia esclarecedor", pensei.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Entre linhas, dois;

O carinho quando encrusta, não prende: Vira pedra.
O sorriso quando some, não se esconde: Vira pelo avesso.
O avesso quando desvira, não vira o que sonhamos, vira o que somos.
Vira o tanto que restou, o que sobrou.
De tudo aquilo que eu sou,
então, o marasmo que criou,
cercou.

Cuidado!
Cercado? O mais próximo que chego é de palhaço
ou de fugitivo cheio de cordas e laços,
sem traços,
nem braços fortes o bastante para um abraço.

Atenção, atenção!
Me chamam por nomes sem um mínimo de respeito
nem correção!
Chamam por nomes que nem sei o que são,
nem o que significarão quando atingirem,
mutilarem,
desbravarem meu pulmão,
meu coração,
meu lugar de emoção, sem comoção digo eu.

Digo eu:
Que bagunça é essa em que me puseram,
para qual me arrastaram,
para qual me mostraram?
Quem ouvir de minha boca "pedi", me interne!
Me congele em câmaras escondidas a léguas de milhas de kilômetros de distância de mim mesmo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

A Biografia nossa de todo dia.

Que nem todo dia seja santo.
Tampouco porra-louca, mas nem tão pouco ocioso, ansioso, parapsicohistericalogisticamente assim:
levanta, banha, lava, come, trabalha, lava, volta, vai, senta, levanta, senta, levanta, lava, volta, retorce, distorce, retrocede, despede, excede, esquece, tristesse, quermesse, isquisitésse, malabarismos cotidianos de todos.
Nem Reis nem Joãos salvam-se.

João, ninguém mais pacato, existe.
João, ninguém tão recato persiste:
erro é acertar o acerto dos outros!
O pulo do gato; a água do poço limpo, suja;
João, ninguém, mas ninguém tão pouco. Tão quieto. Tão...
é, quieto.
Tão...
tão......
quieto.
Apaixonou-se, calou-se. Irritou-se, calou-se. Amou-se, calou-se...
Se, ele dizia sempre. "Se um dia...".

- Se um dia eu ganhar na Mega-Sena... ah! Nem sei... - ria-se.
- ... - respondia-lhe seu quarto azul claro, de cama branca e armários cor-madeira. Ainda tinha seus brinquedos de quando criança espalhados pelas prateleiras. Sua televisão: adesivos. Suas paredes: azuis com pôsteres que deixavam-no feliz, e ao seu pai contente. E ao seu tio, seu avô, e assim por diante.

Gostava de pensar na vida. De como ela iria ser daqui pra frente, a cada novo segundo.
- Daqui pra frente vou começar a estudar menos, passo muito tempo assim.
- ... - respondia-lhe seu quarto.
- É verdade, não duvide de mim não. - em seguida abriu as cortinas de sua janela, levantou os vidros, prendeu-nos em correntes e esperou o vento bater no seu rosto, mecher em seus cabelos, para então respirar e passear por seus pulmões como uma vida nova, um momento novo, um segundo novo.
Para, também, parar de suar diante de tanto mormasso que o dia azul e extremamente quente lhe propunha. Extremamente quente, e sem um vento sequer.
Esperou pela briza por aproximadamente quinze minutos, apreciando a paisagem e torrando seu rosto diante da força do Sol. A estrela máxima.

O ego do sol era tão poderoso que fora capaz de dar vida em troca de não lhe encomodarem com olhares curiosos. Mas não com João. João, ninguém mais, conseguia olhar para o Sol como se fosse uma Lua qualquer. Sua visão acabara ficando extremamente estragada por tal atitude; seus óculos de garrafa eram seu orgulho:
ele encarara o Sol dia atrás de dia. Aquele era sua marca, sua pena, mas também sua vitória.
Sua glória.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Biografia da falta de espaço.

- Preciso de tempo. Um tempo para mim, me entende!
- Não, não entendo. Te dou tudo, te dou o mundo!
- Não, não dá.
Ele ficou no mesmo lugar em que chegou, cinco minutos atrás. Na porta de sua casa, que antes também era dela.
Ela forçou a sua movimentação com um empurrão, uma cotovelada, um olhar do fundo de sua alma para o mais profundo neurônio dele.
Ele saiu do caminho, com muito esforço.
Ela saiu do apartamento, em seguida do andar, em seguida do prédio. Com esforço, com alívio, com alegria. E ganhou as ruas, o mundo que ele tanto queria dar.
Deu, de fato. Mas a força.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Biografia da Briga.

- Essa chuva de merda!
Tentava desembaçar os vidros do seu carro, como se a culpa fosse do mundo.
- Tá tudo úmido, nojento. Tenho que chegar em casa e ainda limpar aquela lameira. Graças a deus que moro em apartamento, graças a deus! Imagina, uma casa! Loucura da cabeça do teu pai. É porque ele não limpa a porra dos teus tênis que, incrivelmente, todos os santos dias ficam embarrados. Nem parece que a gente mora na cidade! Por onde tu anda, afinal?
- No par...
- Não, não. Esquece, nem quero saber. Já me canso, já me estresso o bastante. Você já tem dezoito anos, tá bem grandinho. Vou te colocar para lavar os tênis, para aprender...

E ela ia, ia, ia, até que chegamos em casa. Fui direto para meu quarto, fechei portas e ouvidos, como sempre.
Mas ainda assim ouvia certos grunhidos. Às vezes era ela ensaiando para testes, às vezes atuando como minha mãe mesmo.
Um dia desses ela chegou com os olhos inchados, pensei que tinha conseguido o papel. Mas só soube criticar o texto. Dizia sem parar: "Dor seria ter de fazer este personagem de merda, ó Deus!". Até perguntei o que houve, mas só soube começar a chorar e dizer: "Maldito seja teu pai, maldito seja!", e ainda em tom teatral.
Eu gosto quando ela faz isso. Queria ver ela um dia desses. Ela faz bastantes peças, se esforça bastante e, no geral do dia-a-dia, é bem dramática. Deve ser uma boa atriz. Um dia ela me convida!
E o meu dia? Ah, foi legal. A aula foi chata, e eu tirei outro dez! Acho que vou passar sem problemas esse bimestre. Queria poder ganhar aquele prêmio de melhor aluno da turma na nossa formatura. Não, não, melhor... eu vou ganhar! Daí a minha mãe vai se orgulhar de mim, e talvez ela pare de falar mal do meu pai. Queria saber onde ele tá agora. Na última vez ele tava no quartel, em uma pesquisa de não sei o quê. Queria saber o que ele tá fazendo agora. Opa, calma aí diário, minha mãe ta batendo na porta!

Toc-toc. Silêncio.
O muleque abriu a porta prontamente.
- Oi mãm...
- O almoço. - e foi para a cozinha.
- Tá. - foi atrás.
Ambos sentaram-se na mesa da sala. Ela tinha quatro lugares, três cadeiras. Mas somente os dois sentavam.
Comiam acompanhados dos tilintares de garfos e facas.
Ao terminar seu almoço, a mãe o olha com aquele seu olhar:
- Olha, essa noite sonhei com você.
E o muleque levanta a cabeça, com seu coração contente.
- É? - sorrindo.
- É - também com um sorriso no rosto. Sonhei que você tinha morrido, me fez tão bem.
Levantou-se.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Biografia do Tudo.

Tudo.
Tudo, tudo,
tudo, tudo, tudinho.
Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tun-dum, tun-dum, tun-dum. Dum
tudo.
Dum tudo, tudo, tudo, tudo, dum tudo mudo.
Mudo, tudo, tudo, tudo, mudo, tudo dum tudo tão...
mudo.
Tá tudo tão tudo, tá tudo tão mudo de uma hora para outra tá tudo tão...
tá todo mundo loco, tudo!
Tá todo mundo mais...
tão...
tun-dum. Tun-dum. Tun-dum. Tudinho, tudinho tun-dum.
Tú do quem?
Tú do quem?
Quem?
Tudo.
Tudo?
Tun-dum, então, pra tí. Vai tomar no tudo, no tudinho.
Tá todo mundo tun-dum da cabeça. Tudo tun-dum de coração, de alma, de tudo, tudinho.
Tudão.
Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudão! Tão...
tun-dum. Quem?
Tudo. Tudo mesmo, todo mundo! Mundo, um dó em uma M maior! Tá tudo, tudo mesmo em uma M maior. Que dó! Deram Ré geral, tudó-ré-mi-fa-sol-la-sí você nem vendo, nem tendo, nem medo tens.
Tens nada. Nem tun-dum.
Tun-dum é tudo, tudinho pra mim.
Dum tudo infinito, pena que o tun-dum não é.
Pena que a gente só da Ré, e Ré, e Ré. E tudo, onde fica?
O mundo, temos o mundo, temos tudo! Tudo e o mundo,
chega a me fazer tun-dum.
Tú do onde? Do mundo, oras. Do mundo! O mundo não é mudo, mas ta tudo tão assim...
tão sem nexo que chego a ficar desconcertado diante de tanta falta de ética.
Tudo tão... pouco. Miúdo, achei!
Tá tudo tão miúdo. Tudinho miudinho, em pouquinho nesse mundinho. Mas o tun-dum não!
O tun-dum é tudo, não é mudo, vale o mundo!
O tun-dum é tudão! Desde a ponta do fio do cabelo até o dedão.

Biografia de alguém fora do contexto da história geral.

- Acabou. Não consigo mais, acabou... não posso mais aguentar o teu olhar desatento, tua falta de "eu tento" quando tudo o que faz é desistir, ir escondido entre as multidões, de coração na mão. Não consigo, não quero mais!
Entende?
Não quero... cansei do teu cansaço. Da tua falta de espaço para mim, da tua falta de tempo para mim, da tua falta de mim para ti.
Estou escorado: é por não poder mais carregar teu peso.
Chega! Cansei do peso. Cansei do anseio, anseio que sonha em sonhar acordado - por mal lembrar do sono, por não ter sono na hora do sonho.Não consigo mais desaparecer com teus medos. Já fiz de tudo, já perguntei para o mundo!
Não há respostas, somente respostas vazias. Não há vingança sem atos contrários, pois tudo o que não suporto é a tua falta de feitos!
Enjoei do teu corpo. Tenho nojo do teu cheiro, agora. Levo tudo teu, levo tudo meu. Não te deixo nada, não tens o Direito a nada! Não queres nada, não quero nada teu. Não quero mais nada teu.
Não suporto mais. Nem respirar consigo mais.

Era o vapor. Estava deixando o corpo quente, com a cabeça quente. A face de ambos encostava-se, nariz a nariz, testa a testa. Os cabelos molhados apoiados, longos cabelos molhados, ao livre ar quente imóvel, preso no vapor-banheiro. A mão direita encostava-se palm’a palma, dedo a dedo. A dor tomava conta de sua expressão, de seu corpo-coração.
A mão esquerda começaria a doer da dor dos estilhaços, antes seu par. Agora, estilhaços ao chão. Seus pés doeriam, agora.
Com passos doloridos, sangrou o chão. Pintou o chão com a cor de seu vão. O Mundo era aquele Ser Humano, aqueles seus traços.
A sua sujeira.
A sujeira sujava o chão.
Misturado ao chão antes molhado, ao suor dos pés antes intactos, das pequenas gotas lacrimais, às sujeiras que antes já estavam no chão infinitamente limpo - infinitamente sujo, infinitas vezes – misturava-se o finito:
Aquele Ser Humano.
O Ser Humano estava perdendo seu tempo, sua história, sua memória. A consciência estava desaparecendo.
Barulhos, gritos, socos na porta. Todos estes chamando pelo Ser Humano, mas o Ser Humano trancara a porta.
Havia deixado-os de fora
do festerê, longe da sujeira.
O festerê, a lameira, a bagunça, o caos, a desordem, os quebrados, os inteiros, poucos intactos – todos assistiriam.
Sujou!A porta arrombou, logo: todos viram.Todos viram. Perceberam: o Ser Humano é mais frágil que o invisível. Que o espelho. Que o líquido sólido:
vidro.

domingo, 4 de maio de 2008

Sua Biografia.

Acabou pegando o costume.
Dia após dia encontrava-se com a cavalaria da fonte, da praça, do centro de sua cidade. Perto de sua casa e da padaria da esquina.
Na padaria pegava seu vinho.
Na fonte, deixava-o, após somente alguns goles.
Ele não sabia a quem estava enganando.
A chuva não sabia seus limites.

A chuva parou por dois dias, somente dois dias. Todos aproveitaram para lavar suas roupas sujas, para passear pelas cafeterias, pelas ruas. Para respirarem algum ar!
Ar este que já estava morno dentro de seus pombais, pobres de vontade.
Ele também. Além de não chegar molhado no seu trabalho e de aproveitar para frequentar um barzinho aberto com seus colegas - ou amigos, um dia descobriria - aproveitou os dias secos para não voltar encharcado dos seus passeios matinais.
Dois dias sem sol, de frio e nuvens. Mas sem chuvas. Dois dias que, após acabarem, após ele viver a vida que prometia começar após o termino da malditda chuva, terminaram. E veio, de novo, a chuva: forte ou fraca, pouco molhada ou ensopada, assim ou assada. Simplesmente veio.



6:00 da manhã. Ele levantou com seu despertador a corda turbinando seus ouvidos e despertando-o até a alma.
Nada nobre para um Rei.
Rei do Ócio, como o chamavam.A arte de não fazer nada.
E já estava terminando de por seus tênis de corrida. Rei decidira mudar! E foi, novamente, correndo até a fonte da praça do centro da cidade, sem antes deixar de parar na padaria para comprar o melhor dentre os piores vinhos. Sua cavalaria o esperava, mas não o muleque que pontualmente matava tempo até o sino de uma escola próxima soar.
Coisa da idade.
Achou estranho, mas não se encomodou. Tomou dois, três, quatro goles de seu vinho seco e despejou-o dentro da fonte.
Não para o santo, mas para sua cavalaria imperial.
Um dos cavalos, estaticamente reverenciando um pré-suposto apreciador, continuou a reverenciar seu Rei.
Não do mesmo modo como tantos outros, era diferente. O Rei sentia-se assim.
Sentia-se diferente dos outros que ali sentavam.
Sentia-se verdadeiramente reverenciado.
E ia, então, tomar seu banho para sentar no seu trono para que outros sentassem no seu divã para contarem seus problemas. Era tudo relativamente seu,
tudo que conhecia era basicamente seu,
menos seu eu.
Seu complexo de Rei teria ido mais longe do que sua arte de nada fazer pois seu reinado estendeu-se, seu re e conhecimento:
não. No seu divã, agora seu suor e sua chuva.


Seu apartamento, vazio.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Biografia do Ângulo.

Era primavera e finalmente lá vinha ela com suas roupas pretas desbotadas, fingindo ser alguém que vem como não quer nada.
O sol do fim de tarde batia no seu rosto claro, fazendo sombras nas suas curvas e delineando sua beleza e seu rebolar impávido e brasileiro. O queixo erguido, os passos firmes e o sorriso, escondido por uma petulância nem um pouco impertinente, deixavam claro que seu ego era tão grande e belo quanto as suas belezas vestidas de negro.
Meu café pós-trabalho estava completo.
As mesas estavam lotadas, por isso acabei em uma das banquetas que tanto detesto – a visão para a rua era péssima, dificultando o irreversível e inadiável passeio de fim de tarde daquela juventude sadia e rebelde. Tomei de gole o café que tinha à recém chego e, para amenizar as queimaduras, engoli o sonho de creme. Mandei segurar a conta por minutos, e saí para tomar um ar. E que ar!
O dia havia sido quente, mas o entardecer nos presenteava com aquela brisa gelada, deixando lembranças de um inverno que, em breve, já estaria batendo a porta. "Volto já", é como se dissesse.
O céu mais aberto impossível; e o sol fechava-se à medida que aqueles passos seguiam seu habitual caminho. Caminho este que nunca soube onde terminaria. A impossibilidade de não fazer-se notar, fazia a garota, nem um pouco "inha", feliz – não tanto quanto a mim, que podia assisti-la sem temê-la.
Mas o dia havia sido terrivelmente monótono, como tanto outros. A inércia dos outros participantes das reuniões me presenteava com o cargo de concluinte das decisões e debates, tidos por mim e mim mesmo. Não que eu menospreze a minha capacidade em meu cargo, mas não ter pedras para chutar enferruja a minha língua afiada – que agora poderia estar testando naqueles dezoito e poucos anos, ao invés de resmungar com os meus vinte e cinco e corridos tantos. “Ó, já está indo? Não quer parar para um café? A caminhada deve deixá-la cansada, não quer sentar para uma conversa entediante e cheia de pouco significado?”. Ela com certeza diria um "não, obrigado. Até mais!". Ela saberia dizer não educadamente, sei que ela não gostaria de me magoar.
Ela diria adeus sim, mas pense: há sempre o lado bom nestes casos:
o ângulo.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Biografia?

"É da incerteza, pois", pensava. As certezas me levaram por caminhos, mas essa incerteza... essa incerteza menospreza a minha capacidade de auto-váriascoisas.
É quando nem a marca de papel-higiênico consigo escolher, que procuro a cura da loucura: alguém que a entenda, que a suporte, que a enfrente e, mesmo assim, se comporte.

- Bom-dia - ela ia dizendo, com seu óculos refletindo o meu sentimento de "quem é ela? o que ela faz? que posição ela prefere? os cabelos pretos são tingidos ou ela é tão fingída que nem isso tenta esconder?".
- Bom-dia - eu disse.
E uma hora foi-se. Não sabia para onde olhar mais, nem sabia se devia olhar nos olhos. Os olhos me lembravam minha mãe: carentes, afetuosos, gentis, interesseiros. O corpo lembrava minha ex, e minha ex-ex, e assim por diante. Sou do tipo que congela no tempo, que prefere o time que ganha e fica com ele enquanto ganha. Pena que ele nunca ganhou, mas insisto ferrenho na idéia de que a fórmula é infalível: um dia racha.
Um dia, quem sabe.
Por isso mesmo marquei outra consulta para a próxima semana. O que me deixava extremamente... como dizer... "patético". É, isso mesmo: patético. Definição perfeita, e concordo comigo mesmo em número, gênero e grau - mesmo sem saber, ou lembrar, o que exatamente isso quer dizer, sempre detestei matemática.
Sempre detestei o que não posso entender. Mas não, não me detesto.
De acordo com aquela máxima de alguém: para toda regra há uma excessão. Né?

Passou Quinta, passou Sexta e lá veio o sábado. Maestro ficou de fazer um jantar para um amigo nosso que estaria de aniversário na Segunda, então lá fui eu, mais outra e nova vez.
O jantar foi bom. Aliás, ótimo.
Mas o que riram de mim... não foi pouco. Nunca entendi: um quer um restaurante na praia, achar uma nativa e viver para sempre feliz e simplesmente. Outro apaixona-se até mesmo por um poste.
Mas ninguém ria, ninguém podia rir. Eu, que sempre fui o mais centrado, sempre fui o mais escrachado. Te dizer, viu?
Mas fomos embora cedo, o astral do aniversariante estava pior que... bem, o meu, que... bem estava quase tão ruim quanto do Maestro.
Então fomos embora curtir a foça na maior felicidade e prazer.

Então chegou Quarta.
Patético, eu sei. Mas saí de lá feliz, brigado e sem encontro marcado.
Então chegou Quinta, Sexta... e veio chegando, chegando... e sabe o que eu descobri?
Nada.
Abosultamente nada.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Biografia de um certo acontecimento.

O dia passa,
velozes os carros passam,
veloz o tempo acaba. Sem palmas,
nem gritos,
nem desejos fervorosos. Nem medo.
Meus passos param. Meu olhar, atento,
olha.
Veloz,
seus passos passam. Seu olhar, desatento como sempre,
segue o cachecol. O cachecol voa com o vento.
Eu vôo, eu tento. Ambos vêem o tal fugir, achando-se o tal.
- Pena - eu digo.
- Até que não.
- Um café, então?

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Entre-- entre-linhas --Linhas.

Queria eu poder amar como amam os da esquina.
Se pegam nas mãos,
se enchem de não's implicantes e insistentes.
Riem-se da desgraça, de seu infortúnio, afinal:
encontraram alguém para encarar a vida inteira.
Desgraça,
esta,
que,
ridiculamente devaneio.
Queria eu poder saber o gosto do teu desgosto,
do teu anseio,
dos medos,
sonhos impossíveis,
impossíveis, sei. Mas não!
Eu me engano,
engano-me comigo mesmo. Engano-me com meus quereres.
Ainda descubro.

As tentativas são diversas, os erros são infindos, as mortes a cada noite dóem, sim. Mas a sem-vergonhice anda lado-a-lado ao desinteresse.
- Eu já disse hoje o quanto te amo?
- Não - imitou a voz doce, puxando um pouco de ansiedade e entusiasmo.
Silêncio.
Imitou a voz, imitou o choro. Só não pode imitar o corpo.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A Necrografia do começo.

- Eu preferia nem ter nascido - aos berros.
- Sinta-se em casa, meu filho.
Ela sabia desarmar, mas com olhos bondosos. Nem uma lágrima escorria deles, não faziam-se necessárias. Ela sabia que não.
Não eram necessárias, tenho o bom senso de saber quando as palavras dóem. Lágrimas eram para pessoas tapadas o bastante para não perceber. Daí elas caíam, escorríam, e a pessoa pedia perdão. Ou não. Ou eram trouxas: queriam machucar, mas não sabiam se estava surtindo efeito. Daí o outro era obrigado a perder litros de água, cerveja e vinho para o ignóbil ficar contente, e passar a caprichar um pouquinho mais no palavriado. Então, sim, a pessoa sentia-se ferida.
Bati a porta com força, sentindo medo de tê-la quebrado. E um pouco de culpa por deixá-la do outro lado, sendo que a porta provavelmente havia empenado.

Saí como um raio de casa.
A minha casa não ficava distante da praça da cidade, gostava de ir lá desde pequeno. Algumas ruas, algumas quadras, vários passos. Pertinho.
Eu nem sei, às vezes tudo resolve entrar em colapso, às vezes tudo resolve ser um filme. Às vezes as coisas simplesmente não são. Às vezes, então, nem dá para mudar, nem adianta se esforçar. Às vezes que sim, já contou quantos que não?
A gente dá passos, move o mundo, mas o boteco continua na esquina. Ele não muda, ele continua lá.
Ela também.
A vida, também.
Mas, num estralar de dedos,
não mais. Nunca mais.
Ela sabia se vingar.
Sabe sim,
a vida.
Era tinhosa. Sabia que tantos reclamavam pelo doce estar ruim,
o doce da vida.
Sabia, também, que antes com doce ruim, do que com doce algum.

Tudo o que me restou foi realmente a esperança:
na cruz não estava jesus,
a luz não era o fim,
a sirene sim. Sentia pingos, gotejos. O céu estava chorando por mim, então?
A minha mãe, não. Estava em prantos, mas engolia o choro.
Tudo o que consegui dizer foi:
- Eu já entendi, não precisa chorar. Estou deixando a casa, mãe.

Minha mãe sempre foi muito supersticiosa. Sempre manteve um laço estreito de crenças que nunca entendi. Agora a chuva chovia, tanto quanto ela sofria.
Por dias.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Biografia, e ponto.

O espelho do motorista tremia, dando um efeito um tanto interessante. Cheguei a pensar, por um instante, que outra pessoa aparecia na imagem refletida.
Um efeito interessante.
- Vou meter uma bala na testa daquele canalha.
- Ganha às nossas custas, filho da puta.
- É.
Já eram quase meia-noite, e esses três não paravam de armar planos mirabolantes. Devia ser o chefe.
- Comprou uma puta moto - disse o de vermelho, puto.
- E uma coberturazinha... - disse o do meio.
- Pff...
Os ônibus eram interessantes por isso. Cada coisa.
E uma criança não parava de me encarar, eu me divertia encarando ela com cara de mau. Que não fazia muito efeito, ela me olhava com uma feição tanto de interesse quanto de: "o que esse imbecil tá fazendo?".
Não era muito bom com expressões falsas.
Mentira.

A velocidade era nem um pouco perigosa, é possível que a única pressa de todos era de estar na cama. Mas muitos nem esperavam, babavam no banco mesmo.
Silêncio.
A catraca mais parecia que ia explodir. Tremia tanto quanto o espelho,
o ônibus era velho.

Cléck.
Cléck.
Cléck.
Mais silêncio.
Cléck.
Cléck.
Cléck.
O chiclete estava bom, sabor menta. Era doce.
Servia para mim não sentir o gosto desagradável da vida.
Cléck.
Cléck.
Silêncio, e mais 5 minutos foram-se.
Cléck. Cléck. Clé..................ck.
O chiclete é bom, mas perde a validade. Vai endurecendo, perdendo a doçura, cansando. A vida era mais forte, ela persistia em deixar o gostinho. Cléck. Aquele gostinho tão bom de... menta, era mais agradável. Doce. Espalhava-se, voltava-se, retorcia-se, desvirava-se do avesso do infinito e ia e vinha.
E eu mastigava.
Cléck.
Um ponto.
Cléck.
Cléck.
Dois pontos,
três, quatro, cinco pontos.
Cléck, cléck, cléck's.
Joguei o chiclete fora, estava horrível.

Nunca cheguei a chegar no ponto certo. Sempre passei, sempre fui precipitado demais.
O ponto exato, redondo, fixo, previsível e tão esperado: nunca.
Nem o chiclete.
O chiclete podia ser tudo aquilo, mas tente colá-lo embaixo da carteira do vizinho.
Agora peça para ele levantar a mesa.
Em seguida, veja a sua feição.
Não será falsa.

E a chuva começou a chover.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Biografia do Rei do Ócio.

Há 20 anos atrás uma chuva torrencial atormentou a sua cidade por quinze dias.
Este seria o primeiro dia da tal chuvarada.

Rei, como seus amigos chamavam, não aguentava mais sua vida parada, monótona. Rei, apelido derivado de Rei do Ócio.
De namorada em namorada, de bar em bar sempre com os mesmo amigos. Faria seus trinta e dois anos em poucos dias, seis para ser exato, e os amigos insistiam:
- Que foi, Rei? Fazê festa! Não se faz trinnnnta e doooois anos tooodo dia, ã? - já bêbados.
Piadas infames de bêbados.
Além disso, não poderia chamá-los de amigos. Eram colegas do trabalho que se reuniam praticamente todo dia para beber todas as cervejas da padaria da esquina.
Agora, me diz... quem compra cervejas em padarias?!
- Quem disse que eu não vou fazer festa? Vou sim. Em casa, comigo mesmo: pensar na minha vida.
Sabe como é, todos ficam deprimidos com a chegada do aniversário, ou fazem que ficam para sentirem pena delas. Se você não faz, experimenta.
- Ah, Rei! Só o que faltava!
- Vamos beber com todos!
- Mas... a gente já faz isso todo dia. Quero algo diferente, para variar.
- Saia com alguma diferente!
- Eu sempre saio com alguma diferente.
- Ué, sai com alguma igual então.
O Rei desistiu. Estava cansado, amanhã teria mais do seu trabalho medonho de ajudar pessoas ouvindo-as. Precisava de sua cama.
- E quem vai fazer o jantar do meu aniversário? - perguntou ele, quase saindo da porta.
- Pode deixar que eu faço - Maestro era bom nisso, ainda montaria seu próprio Restaurante.
Rei saiu, fechou a porta, e resolveu não se preocupar com a chuva. Maestro e ele moravam uma quadra de distância, o que facilitara a sua quase-amizade. E tinham a mesma idade.
Canastra, o terceiro, insistia que o caminho era sequestrar o presidente e pedir resgate. Esquece o detalhe: seria morto em seguida.

A casa estava escura, mesmo com as luzes acesas. Elas eram fracas, assim como ele.
Ligou a televisão, no pós-banho, e logo de cara deparou com notícias ruins: a filha de um cara que ouvira falar, mas não sabia a mínima quem era, havia falecido. O nome dela: Julieta. Lindo nome, pena não haver fotos na notícia. O cara era um poeta, de acordo com a Tv.
- É, morreu.
Sentiu-se tão nojento pelas palavras, que chegou ao ponto de tomar um segundo banho.
Sentiu-se pesado depois, a ponto de deitar-se ainda molhado.
O apartamento lhe permitia quatro cômodos básicos: quarto, banheiro, cozinha e sala. Era o básico para a vida d'um solteirão. Três cômodos para alimentação e um para desprezar os restos, ou para aprontar-se para a refeição. No seu sonho só via o escritório sépia e o divã vermelho. E ele, tanto deitado, quanto ouvindo.
Não era um sonho.
O mais próximo de um sonho que tivera foi com um bom vinho. Acompanhado de uma bela mulher de cabelos loiros e olhos negros. Acompanhado de uma puta noite estrelada.
Ambos os três estavam diante de uma lareira, conversando, rindo. Vivendo.
Coincidentemente tudo isto teria acontecido semana passada, às 20:00 horas nesse mesmo apartamento. Também não era um sonho.
Mas parecia.

domingo, 13 de abril de 2008

Biografia da relatividade, parte 1.

A frigideira, santa frigideira, fritava, mais uma santa vez, os malditos camarões à milanesa.
- Por que raios as pessoas pedem tanto disso? Nunca vi disso!
- Que foi, homem? Pára de reclamar que vai queimar tudo aí!
Já passava das três horas da tarde e uma família pós-praia sentia-se faminta. O primeiro lugar que viram foi o comum restaurante "Três Pescados", herói de tal historieta.
- Mas ja passa das três da tarde, oxa!
- Disse, não disse? Disse pra tí fechar... mas não! Agora faz tudinho tu, tudinho. Vou lá atender.
E foi, deixando 54 anos, sendo 15 de cozinha, sozinhos. Pior: sozinhos com a sogra.
- Boa tarde! Bem-vindos, já escolheram a bebida? - sorrindo, como que fosse morder.
- Boa tarde - responderam os quatro. Então, vamos querer uma cervejinha, que tu tens aí? - perguntou o pai.
- A gente tem só Skol e Brahma - já sabendo a reação.
- Bá, então me vê uma Skol mesmo.
Acertara.
- E uma guaraná para as crianças - comentou, rapidamente, a mãe.
Seus filhos de dezenove e dezessete anos logo pensaram, mutuamente: "Crianças? Mal sabe..."
- Ok então, vou ali buscar rapidinho.
- Claro!
Entrou na cozinha, soltando labaredas.
- Ainda bem que não tivemos filhos, não queria ser tão estúpida quanto a morena aí.
- Morena?
A mulher olhou-o com olhar mortal, e o homem voltou a fritar os camarões.
- Calma mulher.
- Calma?
- É, oxa. - ainda olhando para os camarões.
A mulher relaxou. Não sabia porquê de tanta exaltação. E nem podia por culpa na TPM!
- A salada tá pronta - disse a sogra, rindo-se do casal.
A mulher levou.
- Olha uma saladinha para ir matando a fome! - dizia, enquanto deixava o prato na mesa.
- Bá, brigada guria, tava com uma fome que tu nem imagina!
- É, fome de praia não é mole não - comentava o pai. E me ve mais uma?
- Claro! Já volto já!
- Aiai... como é bom uma férias. Não aguentava mais o trabalho. - arriscava a esposa.
- É, eu também. Aquele escritório tava me matando!
- Realmente, férias super animadas. - disseram os dezessete.
- Capaz, tem a praia deserta! - brincou os dezenove.
Os pais ignoraram, era coisa da idade...

Sem-Bio Grafia.

- Será que era para ser assim?
- Não posso dizer de certeza, mas quem sabe...
- Foi tão derepente, tão inesperado... eu não...
- Não esperava. Não pensou que podia acontecer. Não percebeu quê.
- É, por aí.
- Entendo...

Os dias passavam lentos, sem inovações por parte do tempo. Chuva, e só. Dias encarceirados dentro de casa, esperando por um quase milagre.
- Mas é claro que o sol vai voltar amanhã - cantava -, mais uma vez, eu sei!
Quase ria de sua situação. Já lhe era algo ridículo.
Já sentia que não fazia mais sentido.
E quando não faz sentido, não tem porque seguir com o time perdedor.
O telefone demorou, mas tocou.
- Alô.
E desligaram na sua cara.
- Filho da puta - retrucou.
As janelas estavam pingadas da chuva, com riscos de água. Quase poético. Quase.
O telefone voltou a tocar, e continuou tocando. Havia saído num pulo, não aguentava mais as paredes cinzas de seu pequeno aperto. Redundância, eu sei, mas necessária.
Decidiu pelas escadas, como se houvesse outra opção. Hoje queria inovar, ter uma vida mais saudável, e desceu como se fugisse das suas regras. Não havia mais porque parar.
Mas parou, abriu a porta de saída, correu até a entrada do prédio, abriu a porteira e libertou-se: chegou àquela rua húmida pela chuva demasiadamente fina, insistente e extremamente chata. Foi à padaria, escolheu o melhor vinho - o melhor dentre os piores, afinal, ele estava em uma Padaria. Comprou também um abridor, passou o cartão e dirigiu-se à praça.
A praça estava deserta, mas lhe trazia boas lembranças. Andou, cada vez mais molhado, pelos caminhos até chegar a fonte central. Era linda, e, na chuva, os cavaleiros, espadas e cavalos tomavam vida e energia. Estavam em guerra contra o tempo, assim como está nossa personagem. Admirado, como que vendo as estátuas pela segunda, ou terceira vez. Admirado, também, ficou por ver um jovem sentado em um banco. As roupas de moleque, o jeito também."Não estou sozinho", pensou.
Sentou-se nas bordas da fonte, abriu com custo a garrafa, tomou o primeiro gole. Lembrou-se, deu-se o prazer da nostalgia, do choro, e derramou o resto do vinho dentro da fonte.
- Para você - contou à fonte. Você que sempre esteve, desde a primeira vez. Sabe, nós temos algo em comum: essa imagem imóvel de estarmos lutando, é estranho. Me sinto tão potente quanto vocês aí, de cima da fonte. Me sinto como vocês, existo. Esse vinho pode não ser o melhor, afinal, agora, quero que ele represente a minha vida. Quero que vocês sintam o preço dela. É bom até, né?
A fonte não respondeu, obviamente. Mas a personagem sentiu-se bem, apesar de tudo.

A chuva não cessaria tão cedo, mais três dias. Só mais três dias permitiu-se somente existir. Após isso, quem sabe, voltaria a viver.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Grafia de uma bio escrita.

- A dor. O que é a dor? Minhas mãos sangram agora. Meu coração constantemente sangra, e as veias do mesmo constantemente sangram pela vida.
Estava de joelhos no grande palco, com as mãos percorrendo seu rosto, seu ombro, seu corpo. O rosto em puro desespero.
- O que é a dor? Me digam, pois não sei. É o sangue percorrendo a tua pele rasgada?
Só?
As lágrimas escorreram, timidamente, pelas maçãs de suas bochechas vermelhas e enrugadas. A cena estava deixando-a velha.
- Nos desesperamos ao ver o sangue, não sabemos lidar com o sangue, mas nos orgulhamos do sangue, mas detestamos nosso sangue!
Com as unhas cravadas na pele do seu braço, chorou desesperada.
- A dor não é isso, não pode ser só isso! - concentrado-se novamente. A dor não é a visão de seu sangue não estar mais onde deveria estar, a dor é a visão de que a sua vida não está mais onde você gostaria que ela estivesse. O sangue não passa de uma figura ultrajante e simplificada. E...
Com passos calmos, estalou o piso de madeira por onde passava. Tirava o lenço de sua cabeça. Amarrava o lenço na sua ferida e mão. Acolhia a ferida, não mais exposta, em seu ombro. Recostava sua cabeça em sua mão ferida, abraçava a si mesma.Suspirou, e voltou a deixar as lágrimas escorrerem.
- ...quando já não temos o que fazer diante da dor, pelo que lutar, deixamos o sangue escorrer como desculpa para nos entristecermos. Nos enfraquecemos, ao ponto de nem dor sentir. De sentirmos apenas desespero! Desespero, de tamanha dor, que apenas nos entregamos...
vedamos os olhos,
apunhalamos a esperança,
damo-nos mãos a nós mesmos,
baixamos a cabeça. Tudo para apenas deixar claro:
nos rendemos.
Cambaleante, ajoelhou-se. Fingiu um desmaio, deixou as últimas gotas de seu estoque de sangue caseiro escorrerem pelo palco.

- Próxima! - gritou o diretor entediado.
Levantou-se, desesperançosa. Sabia que não servia para este papel. Não queria ter de explicar algo tão especial, tão porcamente.Ele não sabia o que era sentir dor, então, provavelmente, passaria seus dias entediado sem saber o que era sorrir diante das câmeras.
- Você estava ótima - susurrou uma concorrente.
- Mentirosa - susurrou à concorrente.
- Não sou tão boa atriz como você - e entrou em cena, já em prantos, chorando.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Biografia da despretensão.

O muleque não tinha nada o que fazer, foi ao parque. 14 anos de sua vida, ao perceber que não havia nada o que fazer, dirigia-se ao parque - duas quadras de seu condomínio.
O parque era bonito, até.
Tinha árvores, cachorros, famílias e chimarrão. Um parque, oras!
A grama era meio tratada, e o caminho de pedrinhas era interessante.
Mas o muleque não tinha o que fazer, esse é o ponto. Foi ao parque.
Sentou-se como um muleque de 14 anos no primeiro banco que viu vazio. Tarefa complicadíssima! Em um tinha uma mãe com sua cria, não. Outro com um senhor, que com certeza puxaria assunto com o muleque sobre a escola... não. Vários outros com casais felizes, que o muleque não entendia como poderiam ser felizes, e nem queria entender. Não.
Pois bem, encontrou o vazio. Sentou-se, então. Ele gostava de não pensar em nada nesses momentos, no máximo contar os restos de cigarros fumados que espalhavam-se pela pedrita.
Após minutos cansou-se, mudou de posição, colocando a cabeça, pesada como o mundo, sobre as duas mãos; ambas em cada maçã do rosto, fazendo um italiano de gerações mais parecer um japonês canastrão.
Foi lhe dando sono, enquanto os cotovelos machucavam as coxas, onde estavam apoiadas.
E o sono foi lhe dando apoio. O parque era calmo, como o muleque.
O muleque era um muleque sabido, de pouco mulecagem. Um guri que, por falta de palavras, acabei chamando de muleque. Que muleque seja, então.
Um muleque que, de olhos fechados, via mais do mundo que um cego de olhos abertos. Ambos não enxergavam patavinas nessa comparação triste, entenda isso.
Mas viam.

O muleque cansou, os mosquitos começavam a pinicar sua perna.
Fez a volta para casa em silêncio absoluto. Entrou em casa, foi ao quarto. Fechou portas e ouvidos.

...


Bem vindo para mim, bem vindo para eu, bem vindo.