quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Biografia de todo fim, início - parte 3

É um tanto irônico isto: estares um Canastra morto e ainda vivo, enquanto eu Rei vivo, sentir-me assim pouco. Deixei teu apartamento aquela vez com a sensação estranha de que ainda te veria pelas ruas, ainda que de um certo modo eu já tivesse entendido que isto não aconteceria.
Eu não estava ao todo errado.
Dois anos se passaram e te confundir com algum figurão na noite não é nada raro, e talvez ter tido notícias do Maestro tenha reavivado ainda mais esta estranha sensação de infinito que te tornastes.
Ontem estive naquela boate que ias quase todas as noites e me fantasiei de tua personalidade. Não entendo o que aconteceu direito, pouco me lembro. Lembro apenas de tomar meia garrafa da vodka barata que gostavas tanto, de encher meu peito da fumaça que te fazia ser quem eras, de estufar meu ego com a possibilidade de deixar de ser o que chamavas: Rei do Ócio. Sentia raiva a cada vez que me lembrava deste apelido, e descia mais um gole. E, como um mantra, lembrava de você me chamando como me chamavas tanto, e fazia entrar outro gole. E, como um estupro, fazia isto comigo mesmo a cada minuto. Lembro que desci as escadas e o barulho começou a me abraçar em um abraço que nunca antes apenas você já havia me dado.
Lembro pouco, mas lembro de entender tua vida como um cair de ficha ironicamente divino.

Acordei dentro de meu carro no estacionamento com o sol queimando meu braço esquerdo e meu rosto. Em tato encontrei meus óculos escuros no porta luvas e consegui enxergar um pouco melhor e a cena que eu via era linda: nunca havia reparado que o estacionamento dava diretamente para a visão do oceano.
Quer dizer, foi bonito por alguns segundos. Meu estômago não aguentou e entendi porque tua garganta nunca sarava das tosses e supostas gripes e viroses; um dia faço uma mulher gozar do jeito que vomitei. Tu ririas da minha cara e diria algo como:
- Até que enfim está crescendo, D'ócio!
É engraçado. Somos o oposto um do outro, e eu sentia inveja da tua vida assim como sentias tu da minha. Querias ser mais dócil, talvez? Mas me irritava o fato de me achares doce, e tu sabias disso perfeitamente. Acho que isso que te divertia em mim: esta coisa de eu negar tanto quem eu era, quem eu sou. Estarias rindo também desta minha idéia estúpida de tentar fugir de minha pele, de fingir o que não sou para tentar tirar este manto de invisibilidade que grudou em minha carne.
Quando terminei de esguichar toda minha idiotice, endireitei-me no assento do carro e Deus, que vontade de morrer. A última vez que senti dor no corpo deste jeito foi quando entramos numa briga e tive que te segurar para não seres morto; e eis a ironia novamente: parece que não consegui te salvar, não é mesmo?
Talvez se eu não tivesse parado de tentar... ou se eu tivesse tentado e parado apenas um tempo depois... tu e esta idéia de querer defender tão fervorosamente o que tens. Era apenas um celular, seu idiota! Era só ter deixado ele levar, sem briga, sem sangue fervendo; sem essa de ter que seres tu o tempo inteiro.
Mas eu entendo agora; estavas entediado demais na vida coesa, e tampouco querias voltar para tua vida antiga. Morrestes para não te tornares uma pessoa como eu, ao final das contas; no final das contas: pagastes por teu erro de invejar minha vida pacata e estou eu aqui, ao lado de tudo que bebi, desejando morrer a sentir esta dor de cabeça filha duma puta por tentar ter tido uma noite como as tuas.
Nossa idolatria mútua não passou de veneno para o outro; eis aí nossa terceira ironia.
Um sorriso que se transformou em riso, é isso que me sobrou. Fazia tempo que eu não ria assim. A cena estava decadente, as ironias estavam engraçadas demais; somos mesmo uns fodidos, é isso que somos!
Fechei a porta, dei a ignição; voltei para casa rindo no volante. A risada, claro, fazia meu corpo todo girar, eu ainda estava um pouco bêbado e acho que quase atropelei uma dessas malditas motos que costuram o trânsito - achando isto também engraçado e rindo compulsivamente.
Não, não, meu caro amigo: desta vez termino com risadas, e não com choro. Está mais do que na hora de enfim rirmos do passado. Estás mais do que na hora de passar.

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