domingo, 20 de março de 2011

Sombrancelhas

Enquanto meu corpo torna-se o exato oposto do que vejo, meu rosto cada vez mais toma forma de tudo que mais tenho medo, tornar-me outro. A cicatriz de quando caí, a cicatriz de quando briguei, as cicatrizes da ingenuidade, a falta de barba e esta barba faltosa, mal feita. Os pés de galinha e olheiras. Os furos que fiz, os que ainda não fiz e a corrente que me acompanha desde que me tornei gente. Os cabelos descoloridos, pintados, cortados, picados, errados; meu nariz escorrendo da gripe que me assola há anos; meus olhos caídos de sono não dormido por sonhos mal e mal sonhados, e vis bem-vindos; minha boca tossindo no meio de um treino de Ei, Estou Sorrindo...!; minha orelha torta de nascença, pois nem para nascer consegui ser prático. Tive que me agarrar ao cordão umbilical, negando o mundo três, quatro, cinco vezes. Resultado: vim, e ganhei a tal orelha, e agora penso que meu pescoço ser fino é mais uma consequência de minha tentativa de enforcamento precoce - pois sim, devo ser alguma reencarnação de algum fraco, medroso, que pôs fim a sua vida da mesma forma com que a ela nasci. Faria sentido.
Minhas sombrancelhas, gosto de minhas sombrancelhas. Apesar de tudo, gosto de minhas sombrancelhas; e de minha pinta logo abaixo de meu olho esquerda - coisa impossível de notar aos que ou estou longe demais ou perto e ocupado demais. Mas não, não faço minhas sombrancelhas.

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